A Palavra de Afeição - Arthur W. Pink

22:19
Arthur W. Pink
E junto à cruz de Jesus estava sua mãe, e a irmã de sua mãe, Maria de Cleofas, e Maria Madalena. Ora Jesus, vendo ali sua mãe, e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse a sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. 
João 19. 25,26 

“E JUNTO à cruz de Jesus estava sua mãe” (Jo 19.25). Como seu Filho, Maria estava familiarizada com o sofrimento. Desde o princípio somos informados: “E, entrando o anjo onde ela estava, disse: Salve, agraciada; o Senhor é contigo; bendita és tu entre as mulheres. E, vendo-o ela, turbou-se muito com aquelas palavras e considerava que saudação seria esta” (Lc 1.28,29). Isso foi apenas o prenúncio de muitas perturbações: Gabriel tinha vindo lhe anunciar o fato da concepção milagrosa, e um momento de reflexão nos mostrará que não foi coisa fácil para Maria o se tornar a mãe do nosso Senhor dessa forma misteriosa e sem precedentes. Sem dúvida, isso trouxe, mais tarde, grande honra, mas também não pouco perigo no presente para a reputação de Maria, e não pouca prova para a sua fé. É belo observar sua quieta submissão à vontade divina: “Disse, então, Maria: Eis aqui a serva do Senhor; cumpra-se em mim segundo a tua palavra” (Lc 1.38), foi a sua resposta. Isso foi resignação amorosa. Todavia, ela ficou “perturbada” com a Anunciação e, como dissemos, foi apenas o precursor das muitas provas e aflições.

Que aflição deve ter lhe causado quando, por não haver nenhum quarto na pousada, ela teve que deitar o seu bebê recém-nascido numa manjedoura! Que angústia deve ter sido a sua quando soube do intento de Herodes de matar a vida do seu infante! Que transtorno lhe deu ser forçada, por conta dele, a fugir para um país estrangeiro e residir por vários anos na terra do Egito! Que golpes penetrantes na sua alma devem ter sido ao ver seu Filho desprezado e rejeitado pelos homens! Que aperto no coração causava a tristeza de contemplá-lo como odiado e perseguido pela sua própria nação! E quem pode estimar o que ela experimentou enquanto permanecia ali ao pé da cruz? Se Cristo foi o homem de dores, não foi ela a mulher de dores?

“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe” Jo 19.25

1. Aqui vemos o cumprimento da profecia de Simeão.
De acordo com as exigências da lei de Moisés, os pais do menino Jesus trouxeram-no ao templo para apresentá-lo ao Senhor. Então, aconteceu que o velho Simeão, que esperava pela Consolação de Israel, o tomou em seus braços e bendisse a Deus. Depois de dizer: 
Agora, Senhor, podes despedir em paz o teu servo, segundo a tua palavra, pois já os meus olhos viram a tua salvação, a qual tu preparaste perante a face de todos os povos, luz para alumiar as nações e para glória de teu povo Israel” (Lucas 2.29-32), ele se voltou para Maria e disse: 
“Eis que este é posto para queda e elevação de muitos em Israel e para sinal que é contraditado (e uma espada traspassará também a tua própria alma), para que se manifestem os pensamentos de muitos corações” (Lucas 2.34, 35).

Que estranha palavra, essa! Poderia ser que dela, o maior de todos os privilégios fosse trazer a maior de todas as tristezas? Parecia a coisa mais improvável quando Simeão falou. Todavia, quão verdadeira e tragicamente veio a acontecer! Aqui na cruz essa profecia de Simeão foi cumprida.
“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe” (Jo 19.25). Após os dias de sua infância e adolescência, e durante todo o ministério público de Cristo, vemos e ouvimos muito pouco de Maria. Sua vida foi vivida na obscuridade, entre as sombras. Mas agora, quando a hora suprema lhe golpeava com a agonia do seu Filho, quando o mundo rejeitava o filho do seu ventre, ela permaneceu ali, junto à cruz! Quem pode retratar adequadamente tal figura? Maria estava mais perto do madeiro cruel! Despojada de fé e esperança, frustrada e paralisada pela estranha cena, todavia, ligada com a corrente dourada de amor àquele que estava agonizando, ali ela permanece! Experimente e leia os pensamentos e as emoções do coração daquela mãe. Ó, que espada foi aquela que perfurou a sua alma então! Felicidade tal como nunca em um nascimento humano, tristeza tal como nunca em uma morte desumana.

Aqui vemos demonstrado o coração de mãe. Ela é a mãe daquele homem moribundo.
Aquele que agonizava ali sobre a cruz era o seu filho. Ela foi a primeira a beijar aquela testa agora coroada de espinhos. Ela foi a primeira a guiar aquelas mãos e pés nos seus movimentos quando bebê.

Nenhuma mãe jamais sofreu como ela. Seus discípulos podem desertá-lo, seus amigos podem esquecê-lo, sua nação pode desprezá-lo, mas sua mãe permanece ali ao pé da sua cruz. Oh, quem pode sondar ou analisar o coração da Mãe?

Quem pode mensurar aquelas horas de tristeza e sofrimento à medida que a espada atravessava lentamente a alma de Maria? Não houve nenhum pranto histérico ou efusivo. Não houve nenhuma demonstração de fraqueza feminina; nenhum clamor violento vindo de uma angústia incontrolável; nenhum desmaio. Palavra alguma de seus lábios ficou registrada por nenhum dos quatro evangelistas: ela aparentemente sofreu em vigoroso silêncio. Todavia, sua tristeza não foi menos real e aguda. Águas silenciosas penetram fundo. Ela viu aquela testa perfurada com espinhos cruéis, mas não pôde alisá-la com seu terno toque. Ela viu suas mãos perfuradas e seus pés ficarem dormentes e pálidos, mas ela não podia esfregá-los. Ela notou sua necessidade de água, mas não lhe foi permitido saciar sua sede. Ela sofreu em profunda desolação de espírito.

“E junto à cruz de Jesus estava sua mãe” (Jo 19.25). A multidão estava zombando; os ladrões, insultando; os sacerdotes, escarnecendo; os soldados, endurecidos e indiferentes; o Salvador, sangrando e morrendo - e ali está sua mãe contemplando a horrível zombaria. Quem ficaria maravilhado se ela desmaiasse diante de uma tal visão! Quem ficaria maravilhado se ela se afastasse de um tal espetáculo! Quem ficaria maravilhado se ela fugisse de uma tal cena!

Mas não! Ali estava ela: não se encolhe, não desmaia, e nem mesmo desaba ao chão em sua dor - ela permaneceu de pé. Sua ação e atitude são singulares. Em todos os anais da história da nossa raça não há nenhum paralelo. Que coragem transcendente! Ela permaneceu junto à cruz de Jesus - que vigor maravilhoso! Ela reprimiu sua dor, e permaneceu ali quieta. Não foi a reverência pelo Senhor que a guardou de perturbá-lo em seus últimos momentos?

“Ora, Jesus, vendo ali sua mãe e que o discípulo a quem ele amava estava presente, disse à sua mãe: Mulher, eis aí o teu filho. Depois, disse ao discípulo: Eis aí tua mãe. E desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa” Jo 19.26, 27

2. Aqui vemos o homem perfeito colocando um exemplo para os filhos honrarem os seus pais. 
O Senhor Jesus evidenciou sua perfeição na maneira com que cumpriu plenamente as obrigações de toda relação que ele manteve, quer para com Deus, quer para com os homens. Na cruz nós contemplamos seu terno cuidado e solicitude para com sua mãe, e nisto temos o padrão de Jesus Cristo apresentado a todos os filhos para que eles o imitem, ensinando-lhes como se portarem para com os seus pais de acordo com as leis da natureza e da graça.

As palavras que o dedo divino gravou nas duas tábuas de pedra, e que foram dadas a Moisés no Monte Sinai, nunca foram anuladas. Elas ainda estão em vigor enquanto a terra perdurar. Cada uma delas está incorporada no ensino didático do Novo Testamento. As palavras de Êxodo 20.2 são reiteradas em Efésios 6.1-3: “Vós, filhos, sede obedientes a vossos pais no Senhor, porque isto é justo. Honra a teu pai e a tua mãe, que é o primeiro mandamento com promessa, para que te vá bem, e vivas muito tempo sobre a terra”.

O mandamento para os filhos honrarem os seus pais vai muito além de uma mera obediência a essa vontade expressa, embora, certamente, inclua essa. Ele envolve amor e afeição, gratidão e respeito. Com freqüência se pensa que esse quinto mandamento é dirigido aos jovens somente. Nada pode estar mais longe da verdade. Inquestionavelmente ele se dirige a eles em primeiro lugar, pois na ordem da natureza os filhos são sempre primeiramente jovens. Mas concluir que tal mandamento perca força quando a infância é deixada para trás é não entender pelo menos metade do seu significado profundo. Como sugerido, a palavra “honra” vai além de obediência, embora essa seja seu sentido principal. No curso do tempo os filhos crescem até alcançar a virilidade, que é a idade de plena responsabilidade pessoal, a idade quando eles não mais estão debaixo do controle dos seus pais, todavia, as suas obrigações não cessaram. Eles devem aos seus pais um débito que eles nunca podem se desobrigar plenamente. O mínimo dos mínimos que podem fazer é manter os seus pais em alta estima, colocá-los no lugar de superioridade e reverenciá-los. No Exemplo perfeito encontramos tanto obediência como estima manifestadas.

O fato de que o último Adão não veio a este mundo como o primeiro Adão - em plena posse das glórias distintivas da humanidade: totalmente desenvolvido em corpo e mente - mas como um bebê, tendo que passar por todo o período da infância, é um fato de tremenda importância e valor pela luz que ele lança sobre o quinto mandamento. Durante seus primeiros anos, o menino Jesus estava sob o controle de Maria, sua mãe, e de José, seu pai legal. Isso é belamente demonstrado no segundo capítulo de Lucas.

Quando chegou aos doze anos, Jesus foi levado por eles até Jerusalém para a festa da Páscoa. O retrato apresentado é profundamente sugestivo se a devida atenção lhe for dada. No final da festa, José e Maria partem para Nazaré, acompanhados pelos seus amigos e supondo que Jesus estivesse com eles. Mas, pelo contrário, ele tinha permanecido na cidade real. Após um dia de jornada sua ausência foi descoberta. Imediatamente eles voltaram para Jerusalém, e ali o encontraram no templo. Sua mãe o interroga assim: “Quando os pais viram o menino, também ficaram admirados. E a sua mãe lhe disse: —Meu filho, por que foi que você fez isso conosco? O seu pai e eu estávamos muito aflitos procurando você” (Lc 2.48, ARA). O fato de que ela o buscara “aflita” implica fortemente que ele quase nunca havia estado fora da esfera imediata da influência dela. Não encontrá-lo por perto foi para ela uma nova e estranha experiência, e o fato de que ela, assistida por José, o buscou “aflita” revela a bela relação existente entre eles no lar em Nazaré! A resposta que Jesus deu à sua pergunta, quando corretamente entendida, também revela a honra que tinha por sua mãe. Estamos bem de acordo com o Dr. Campbell Morgan de que Cristo não a repreendeu aqui. Em grande medida, trata-se de uma questão de achar a ênfase correta: “Não sabeis?”. Como o expositor anteriormente mencionado bem o diz: “É como se ele tivesse dito: ‘Mãe, certamente você me conhece bem o suficiente para saber que nada pode me deter, senão os negócios do Pai”. A seqüência é igualmente bela, pois lemos “E desceu com eles, e foi para Nazaré, e era-lhes sujeito” (Lc 2.51). E assim, por todo o tempo o Cristo de Deus deu o exemplo para os filhos obedecerem aos seus pais.

Mas há mais. Aconteceu com Cristo o mesmo que nos sucede: os anos de obediência à Maria e José terminaram, mas não os anos de “honra”. Nas últimas e terríveis horas de sua vida humana, no meio dos sofrimentos infinitos da cruz, o Senhor Jesus pensou naquela que o amava e a quem ele amava; ele pensou na sua necessidade presente e proveu para a sua necessidade futura encomendando-a aos cuidados daquele discípulo que mais profundamente entendeu o seu amor. Seu pensamento em Maria naquela hora e a honra que ele lhe deu foi uma das manifestações de sua vitória sobre a dor.

Talvez se requeira uma palavra com relação à forma com que nosso Senhor se dirige à sua mãe - “Mulher”. Até onde os registros dos quatro evangelhos vão, nunca ele a chamou de sua “Mãe”. Para nós que vivemos hoje, a razão para isso não é difícil de ser discernida. Olhando para os séculos vindouros com previsão onisciente, e vendo o horrível sistema de Mariolatria tão logo sendo erigido, ele se refreou de usar uma palavra que de alguma forma sustentasse essa idolatria - a idolatria de prestar à Maria a veneração que só a seu Filho é devida; a idolatria de adorá-la como sendo “A Mãe de Deus”.

Por duas vezes nos registros dos evangelhos, encontramos sim nosso Senhor se dirigindo a Maria como “Mulher”, e é mais digno de nota que ambas se encontram no de João, o qual, como bem sabido, apresenta a deidade de nosso Salvador. Os sinóticos o expõe em suas relações humanas; tal não se dá com o quarto evangelho. O de João apresenta Cristo como o Filho de Deus, e como tal, acima de todas as relações humanas, e daí a perfeita consonância de mostrar o Senhor Jesus aqui se dirigindo a Maria como “Mulher”.

O ato de nosso Senhor na cruz, encomendando-a aos cuidados de seu amado apóstolo, é mais bem entendido à luz da viuvez de sua mãe. Ainda que os evangelhos não registrem especificamente a sua morte, há poucas dúvidas de que José morrera antes do tempo em que o Senhor Jesus começou seu ministério público. Nada é informado sobre o marido dela após o incidente relatado em Lucas 2, quando Jesus era um menino de doze anos. Em João 2 Maria é vista nas bodas de Caná, mas não se fala nada sobre se José estava presente. Foi em vista da viuvez de Maria, portanto, e também do fato de que o tempo agora chegara, quando não mais seria um conforto para ela com sua presença corporal, que seu amoroso cuidado é manifestado.

Permita-me apenas uma breve palavra de exortação. Provavelmente tais linhas poderão ser lidas por várias pessoas adultas que ainda têm pais e mães vivos. Como você está tratando deles? Está verdadeiramente “honrando-os”? Esse exemplo de Cristo na cruz não o deixa envergonhado? Pode ser que você seja jovem e vigoroso, e seus pais, de cabelos grisalhos e doentes; mas diz o Espírito Santo: “não desprezes a tua mãe, quando vier a envelhecer” (Pv 23.22). Pode ser que você seja rico, e eles, pobres; então não deixe de prover por eles. Pode ser que eles vivam em um estado ou uma terra distante, então não seja negligente, deixando de escrever-lhes palavras de apreço e alegria que darão brilho ao término de seus dias. São obrigações sagradas: “Honra a teu pai e a tua mãe”.

3. Aqui vemos que João retornara ao lado do Salvador.
Com exceção, naturalmente, do sofrimento de Cristo na mão de Deus, talvez a escória mais amarga de todas no copo em que ele bebeu fosse o seu abandono por parte dos apóstolos. Foi ruim o bastante e triste o bastante o fato de seu próprio povo, os judeus, desprezarem e rejeitarem-no; porém, de longe pior foi os Onze, que o haviam acompanhado por tanto tempo, desertarem de seu Senhor na hora da crise. Alguém pensaria que sua fé e seu amor fossem iguais mesmo nos sobressaltos. Mas não foram. “Todos... deixando-o, fugiram” (Mt 26.56), é o que traz a narrativa sacra. Indizivelmente trágico isso. Seu fracasso em “vigiar” com ele por uma hora no Jardim bem que quase paralisa nossas mentes, mas o afastar-se dele na hora de sua prisão quase desconcerta a nossa compreensão. Quase, dizemo-lo, pois se não tivermos aprendido por amarga experiência o engano que há em nossos corações, quão débil é a nossa fé, quão lamentavelmente fracos nós somos na hora da provação e do teste! Mas, pela graça divina, a menor das ninharias é suficiente para nos vencer. Tirado o poder retentor e sustentador de Deus, por quanto tempo nós agüentaríamos?

O Senhor Jesus havia solenemente avisado esses discípulos de sua covardia próxima: “Então Jesus lhes disse: Todos vós esta noite vos escandalizareis em mim; porque está escrito: Ferirei o pastor, e as ovelhas do rebanho se dispersarão” (Mt 26.31). E não apenas Pedro, mas todos os apóstolos afirmaram sua determinação de ficar ao lado dele:
“Disse-lhe Pedro: Ainda que me seja mister morrer contigo, não te negarei. E todos os discípulos disseram o mesmo” (Mt 26.35). Entretanto, sua palavra se provou verdadeira, e eles todos desertaram dele de modo desprezível. E como isso refletia sobre sua glória! Pela fuga pecaminosa, eles expuseram o Senhor Jesus ao desprezo e troças dos seus inimigos. É por causa disso que lemos: “O sumo-sacerdote interrogou Jesus acerca dos seus discípulos” (Jo 18.19). Nem é preciso complementar a frase. Sem dúvida, Caifás o inquiriu sobre quantos discípulos ele tivera, e o que era feito deles agora? E qual foi a razão por que abandonaram seu Mestre, e o deixaram se arranjar sozinho quando surgiu o perigo? Mas observe que, para essa questão, o Salvador não deu resposta alguma. Ele não os acusaria ao inimigo comum ainda que eles tivessem desertado dele.

Eles o abandonaram porque ficaram “ofendidos” por causa dele: “Todos vós ficareis ofendidos por causa de mim esta noite” (Mt 26.31, KJV): a palavra grega aqui traduzida por “ofendido” pode bem ser vertida “escandalizado” . Ficaram com vergonha de serem achados em sua companhia. Eles julgaram não ser mais seguro permanecer com ele. Como ele se entregou, consideraram aconselhável se prevenir o quanto pudessem, e em algum lugar ou outro se refugiarem da presente tempestade que se abatera sobre ele. Isso forma o lado humano.

Da parte divina, o abandono de Cristo por eles era devido à suspensão da graça preservadora e sustentadora de Deus. Eles não estavam acostumados a abandoná-lo. Nunca o fariam mais tarde. Jamais teriam agido assim nesse momento se tivesse havido influências de poder, zelo e amor vindas do céu sobre eles. Mas então como poderia Cristo ter carregado o fardo e a cólera daquele dia? Como deveria ele ter pisado o lagar sozinho? Como deveriam suas dores ter ficado sem lenitivo se eles houvessem aderido fielmente a ele? Não, não, não o deve ser. Cristo não deve ter o menor alívio ou conforto de qualquer criatura e, por essa razão, para que ele pudesse ser deixado sozinho com a ira de Deus e do homem, o Senhor por um tempo retém suas influências revigorantes deles; e então, como Sansão, quando teve cortado os cachos de sua cabeleira, ficaram tão fracos como os outros homens. “Fortalecei-vos no Senhor e na força do seu poder”, diz o apóstolo — se tal é retido, nossos desígnios e resoluções se derretem diante da tentação como a neve diante do sol.

Todavia, observe que a covardia e a infidelidade dos apóstolos foi apenas temporária. Mais tarde, eles o buscaram no lugar assinalado na Galiléia (Mt 28.16). Mas não é motivo de regozijo saber que um dos onze procurou sim a ele antes de sua ressurreição triunfante do túmulo? Sim, foi procurado enquanto ainda pendia na cruz de vergonha! E quem se poderia supor que fosse? Qual do pequeno grupo dos apóstolos deve demonstrar a superioridade de seu amor? Mesmo se a narrativa sagrada houvesse ocultado sua identidade, não teria sido algo difícil fornecer seu nome. O fato ora considerado na escritura mostra-nos João ao pé da cruz, e é uma testemunha silenciosa porém suficiente da divina inspiração da Bíblia. É uma daquelas harmonias não intencionadas da palavra que atesta a origem sobre-humana das escrituras. Não há indicação alguma que qualquer outro dos onze estivesse ao redor da cruz, mas o leitor atento esperaria achar ali “o discípulo a quem Jesus amava” . E lá estava ele. João retornara ao lado do Salvador, e ali recebe dele uma bendita comissão. Quão natural e quão perfeita é a silenciosa harmonia da escritura!

E agora, mais uma vez, uma breve palavra de exortação. Há alguém que lê estas linhas que esteja se apartando do lado do Salvador, que não mais esteja desfrutando da doce comunhão com ele; que, em uma palavra, esteja desviado? Talvez na hora da prova você o tenha negado. Talvez na hora do teste você falhou. Você pensa mais nos seus próprios interesses que nos dele. A honra do nome dele, que você porta, foi perdida de vista. Ó, que a flecha da convicção agora entre em sua consciência. Possa a divina graça enternecer o seu coração. Possa o poder de Deus trazê-lo de volta a Cristo, onde somente sua alma pode encontrar satisfação e paz. Aqui há encorajamento para você. Cristo não repreendeu João por retornar; antes, sua maravilhosa graça concedeu-lhe um inefável privilégio. Cesse então de suas perambulações e volte imediatamente a Cristo, e ele o saudará com uma palavra de boas-vindas e de alegria; e quem sabe se ele não tem uma honrosa comissão aguardando por você!

4. Aqui descobrimos uma ilustração da prudência de Cristo.
Já vimos como o ato de Cristo em encomendar Maria às mãos de seu discípulo foi uma expressão de seu terno amor e de sua presciência. Pois João se encarregar da mãe viúva do Salvador foi uma abençoada comissão e, contudo, um legado precioso. Quando Cristo lhe disse, “Eis aí tua mãe” , foi como se tivesse dito, Seja ela para ti como tua própria mãe: Seja teu amor por mim agora manifestado em teu terno cuidado por ela. Porém, havia muito mais do que isso por trás desse ato de Cristo.

Outrora já fora predito que o Senhor Jesus deveria agir sábia e discretamente. Por meio de Isaías, Deus dissera: “Eis que o meu servo operará com prudência” (52.13). Ao encomendar sua mãe aos cuidados de seu amado apóstolo, o Salvador mostrou sábia discriminação em sua escolha daquele que a partir de então seria o guardião dela.

Talvez não houvesse ninguém que compreendesse o Senhor Jesus tão bem quanto sua mãe, e é quase certo que ninguém apreendera seu amor tão profundamente quanto João.
Vemos portanto como seriam eles companhias apropriadas um para o outro, visto que havia um laço íntimo de simpatia comum que os unia juntamente e os ligava a Cristo!

Desse modo, não havia ninguém tão adequado para cuidar de Maria, ninguém cuja companhia ele acharia tão afim e, por outro lado, não existia ninguém cuja companhia João pudesse desfrutar mais.
Além disso, deve-se ter na mente que uma obra maravilhosa e honrosa estava esperando por João. Anos mais tarde, o Senhor Jesus foi revelar a si próprio ao apóstolo no glorioso apocalipse. Como, então, ele melhor poderia se habilitar para tal senão estando constantemente com ela, que vivera em estreita intimidade e comunicação com o Salvador durante os trinta anos que ele tinha esperado para dar início ao seu trabalho! Podemos, portanto, ver como era de significativa propriedade que esses dois — Maria e João — fossem trazidos para junto um do outro. Admire então a prudência da eleição por Cristo de um lar para Maria, e ao mesmo tempo provendo uma companhia para o discípulo a quem ele amava, que poderia ter uma bendita companhia espiritual.

Antes de passarmos para o nosso próximo ponto, podemos fazer uma observação de que esse recolhimento de Maria à casa de João traz luz a um incidente registrado no próximo capítulo do evangelho escrito por ele. Em João 20 se nos informa da visita de Pedro e João ao sepulcro vazio. João ultrapassou seu companheiro e chegou primeiro ao túmulo, mas não entrou. Pedro, como era de sua característica, adentra o sepulcro, e nota a ordenada disposição das roupas. Então entra João e vê e “crê”, pois até esse tempo a fé deles não tinha apanhado o sentido das promessas da ressurreição de Cristo. Conseqüente com a crença de João, lemos: “E os discípulos voltaram assim para os seus lares” (Jo 20.10, Tradução do Novo Mundo). Não nos é dito o porquê deles assim agirem, mas, à vista de João 19.27, a explicação fica óbvia. Ali se nos conta que “desde aquela hora o discípulo a recebeu em sua casa”, e agora que fica sabendo que o Salvador ressurgira dentre os mortos, e se apressa para “casa” para dizer a ela as boas novas! Quem mais do que ela regozijar-se-ia ante essas notícias alvissareiras! Esse é um outro exemplo da harmonia silenciosa e escondida da escritura.

5. Aqui vemos que as relações espirituais não devem ignorar as responsabilidades naturais.
O Senhor Jesus estava morrendo como o Salvador para os pecadores. Ele estava comprometido com a mais importante e estupenda incumbência que esta terra jamais testemunhou ou testemunhará. Ele estava a ponto de oferecer satisfação à justiça divina ultrajada. Ele estava para fazer aquela obra pela qual o mundo fora feito, pela qual a raça humana fora criada, pela qual todas as eras aguardaram, e pela qual ele, o Verbo eterno, se encarnara. Entretanto, ele não passou por cima das responsabilidades dos laços naturais; ele não deixou de fazer provisão àquela que, de acordo com a carne, era sua mãe.
Há aqui uma lição a qual muitos precisam levar a sério nos dias correntes. Nenhuma obrigação, nenhuma obra, por importante que seja, pode nos servir de escusa para deixarmos as obrigações de natureza, de cuidar daqueles por quem temos deveres de sangue. Aqueles que partem como missionários para labutar em terras pagãs, e que deixam para trás seus filhos, ou que os enviam de volta à terra natal para serem cuidados por estranhos, não estão seguindo os passos do Salvador. Aquelas mulheres que passam a maior parte de seu tempo em reuniões públicas, ainda que sejam de cunho religioso, ou que descem às favelas para ministrar aos pobres e necessitados, negligenciando sua própria família em casa, só estão trazendo vitupério ao nome e à causa de Cristo. Tais homens, mesmo que estejam à frente da obra de Cristo, que estão tão ocupados pregando e ensinando que não têm tempo algum para cumprir as obrigações por ele devidas às suas próprias esposas e filhos, precisam estudar e praticar o princípio exemplificado aqui por Cristo na cruz.

Aqui vemos uma necessidade universal exemplificada.
Quão diferente é a Maria da escritura da Maria da superstição! Ela não era nenhuma Madona altiva, mas um membro da raça caída como cada um de nós, uma pecadora tanto por natureza quanto por prática. Antes do nascimento de Cristo ela declarou: “A minha alma engrandece ao Senhor, e o meu espírito se alegra em Deus meu Salvador” (Lc 1.46,47). E agora, na morte do Senhor Jesus ela é encontrada perante a cruz. A palavra de Deus não apresenta a mãe de Jesus como a rainha dos anjos adornada com diadema, mas como alguém que se deleitava em um Salvador. É verdade que ela é “bendita entre (não ‘acima de’) as mulheres”, e isso em virtude da elevada honra de ser a mãe do Redentor; todavia, ela era humana, um membro real de nossa raça caída, uma pecadora que precisava de um Salvador.

Ela permaneceu junto à cruz. E quando ali estava, o Salvador exclamou, “Mulher, eis aí o teu filho!” (Jo 19.26). Ali, resumida numa simples palavra, é expressa a necessidade de todo descendente de Adão — voltar os olhos do mundo, para fora do eu, e olhar por fé para o Salvador que morreu pelos pecadores. Ali está o divino epítome do Caminho da Salvação. Libertação da ira vindoura, perdão dos pecados, aceitação por parte de Deus, tudo isso é obtido, não por feito meritório, não por boas obras, não por ordenanças religiosas; não, a salvação vem por contemplar — “Eis o cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” . Assim como os israelitas mordidos pelas serpentes no deserto foram curados por um olhar, por um olhar para o que Jeová designou que fosse o objeto da fé deles, também hoje a redenção da culpa e do poder do pecado, a libertação da maldição da lei quebrada e do cativeiro de Satanás, deve ser encontrada somente pela fé em Cristo. “E, como Moisés levantou a serpente no deserto, assim importa que o Filho do homem seja levantado; para que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (João 3.14,15). Há vida em um olhar. Leitor, você já contemplou desse modo aquele divino Sofredor? Você o viu morrendo na cruz, o justo pelo injusto, para que pudesse nos trazer para Deus? Maria, mãe de Cristo, precisava “contemplá-lo”, e assim é com você. Olhe então, olhe para Cristo e serás salvo.

6. Aqui vemos a maravilhosa combinação das perfeições de Cristo.
Essa é uma das maiores maravilhas de sua pessoa — a combinação da mais perfeita afeição humana com sua glória divina. O próprio evangelho que o mostra sobretudo como Deus é aqui cuidadoso par provar que ele era homem — o Verbo que se fez carne. Comprometido que estava na divina transação, fazendo expiação por todos os pecados de seu povo, lutando contra os poderes das trevas, todavia, em meio a isso tudo, ele ainda tinha a mesma ternura humana, que mostra a perfeição do homem Jesus Cristo.

Esse cuidado por sua mãe na hora da morte era característico de toda a sua conduta. Tudo era natural e perfeito. A simplicidade não estudada dele é mais notada. Não havia nada pomposo ou faustoso. Muitas das suas mais poderosas obras foram feitas no caminho, na cabana ou entre um pequeno grupo de sofredores. Muitas de suas palavras, que ainda hoje são insondáveis e inexauríveis em sua riqueza de significação, foram proferidas quase que casualmente enquanto caminhava com alguns amigos.

Assim o foi na cruz. Ele estava executando aquela mais poderosa obra de toda a história. Ele estava comprometido em realizar aquela que faz com que, em comparação, a criação do mundo se esmaeça em total insignificância, porém, não esquece de fazer provisão para sua mãe — provisão essa que ele pôde fazer bastante quando estiveram juntos na casa em Nazaré. Corretamente foi dito outrora: “Seu nome será Maravilhoso” (Is 9.6).

Maravilhoso o foi em tudo que fez. Maravilhoso o foi em todo relacionamento que ele manteve.
Maravilhoso o foi em sua pessoa, e maravilhoso o foi em sua obra.
Maravilhoso o foi em vida, e maravilhoso o era na morte. Que nos maravilhemos e adoremos.

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Retirado do e-book: "OS SETE BRADOS DO SALVADOR
SOBRE A CRUZ. ARTHUR W. PINK"

Traduzido do original em inglês 
The Seven Sayings of the Saviour on the Cross (1919) 
Tradução: Vanderson Moura da Silva 

Créditos: Monergismo.com