Então, essa mortificação só terá lugar em nós quando exercermos vera caridade. O que não consiste em apenas cumprir todos os deveres da caridade, mas em cumpri-los movidos pelo verdadeiro amor. Pois pode acontecer que alguém faça ao seu próximo tudo o que deve quando se trata do cumprimento meramente exterior do dever, e, todavia estar bem longe de cumprir o seu dever movido pela razão legítima. Vê-se muito isso, pois há aqueles que querem parecer muito generosos e, todavia, não dão coisa alguma sem lançar em rosto, seja pelo semblante altivo, seja por palavra soberba. Atualmente chegamos a esta desgraça, que a maioria não dá nenhuma esmola senão acompanhada de algum insulto. Perversidade intolerável, mesmo entre pagãos.
Pois bem, o Senhor exige dos cristãos coisa muito diferente do que semblante alegre e amável, para tornar a sua beneficência simpática graças a um tratamento humanitário e terno. Primeiro, devem colocar-se no lugar da pessoa que tem necessidade de ajuda; segundo, que tenham dó da sua sorte como se eles próprios estiverem passando por essa situação; e, terceiro, que se deixem mover pelo mesmo sentimento de misericórdia ao ajudá-la, como se eles próprios fossem os necessitados socorridos. Quem tiver tal disposição de ânimo na ajuda que prestar a seus irmãos, não somente não contaminará a sua beneficência com qualquer laivo de arrogância ou censura, mas também não menosprezará a pessoa beneficiada por sua indigência, nem quererá subjugá-la, como se ela lhe devesse obrigação.
A verdade que não insultamos nenhum dos nossos membros enfermos, por cujo restabelecimento todo o resto do corpo trabalha, e nem por isso achamos que ele fica especialmente obrigado aos demais membros pelo empenho destes em socorrê-lo. Porquanto o que os membros se comunicam uns aos outros não deve ser considerado como coisa gratuita, mas, antes, como pagamento e cumprimento do que a lei da natureza exige.
Daí decorre também que venceremos outro aspecto, pois não nos consideraremos livres e com as contas pagas por termos feito o nosso dever nisto ou naquilo, como geralmente se pensa. Porque o rico acredita que, depois de ter dado algo do que possui, pode dar-se por satisfeito, e então negligencia todas as outras responsabilidades, como se não lhe dissessem respeito. Ao contrário, cada um deverá considerar que é devedor ao próximo de tudo o que tem e de tudo que está em seu poder, e que não deve limitar a sua obrigação de praticar o bem, a não ser quando já não tenha recursos para isso; estes, até onde podem estender-se, devem estar subordinados ao que manda a caridade.
Autor: João Calvino
Fonte: As Institutas da Religião Cristã, edição especial, ed. Cultura Cristã
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