Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Mateus 27.46
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
ESSAS SÃO PALAVRAS DE CHOCANTE IMPORTÂNCIA. A crucificação do Senhor da glória foi o mais extraordinário evento que já aconteceu na terra, e esse brado do padecente foi a mais extraordinária expressão daquela aterradora cena. Que um inocente fosse condenado, que o sem culpa fosse perseguido, que um benfeitor fosse cruelmente sentenciado à morte, não era nenhum acontecimento novo na história. Do assassínio do justo Abel àquele de Zacarias houve uma longa lista de martírios. Mas aquele que pendurado estava na cruz do centro não era nenhum homem comum, era o Filho do Homem, aquele no qual todas as excelências se encontravam — o Perfeito. Seu caráter era como sua túnica, “tecida toda de alto a baixo, [e] não tinha costura”.
No caso dos outros maltratados havia deméritos e manchas que poderiam proporcionar aos seus assassinos algo com que culpá-los. Mas desse o juiz falou: “Não acho nele crime algum”.
E mais. Esse Sofredor não era apenas um homem perfeito, mas o Filho de Deus. Todavia, não era estranho que o homem quisesse destruir Deus. “Disse o néscio no seu coração: Não há Deus” (Sl 14.1), tal é o seu desejo. Mas é estranho que aquele que era Deus manifestado na carne devesse permitir a si mesmo ser assim tratado por seus inimigos. É extremamente estranho que o Pai que se deleitava nele, cuja própria voz declarara dos céus abertos, “Este é o meu Filho amado, em quem me comprazo”, devesse entregá-lo a uma morte tão vexaminosa.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras de estarrecedora miséria. A própria palavra “desamparaste” é uma das mais trágicas em todas as línguas humanas. O escritor jamais se esquecerá da sensação que teve ao passar uma vez por uma cidade deserta, sem habitante algum — uma cidade desamparada. Que calamidades são conjuradas por tal palavra — um homem desamparado de seus amigos, uma esposa desamparada de seu marido, uma criança desamparada por seus pais! Mas uma criatura desamparada por seu Criador, um homem desamparado de Deus — Ó, isso é o mais horrendo de tudo. Esse é o mal dos males. Isso é a calamidade climatérica. Verdade, os homens caídos, em sua condição não renovada, não o acham. Mas aquele que, pelo menos em certa medida, aprendeu que Deus é a essência de toda perfeição, a fonte e a meta de toda excelência, cujo clamor é “Como o cervo brama pelas correntes das águas, assim suspira a minha alma por ti, ó Deus!” (Sl 42.1), prontamente endossará o que acaba de ser dito.
O clamor dos santos em todas as eras tem sido, “Não nos desampare, ó Deus”. Pois o Senhor esconder sua face de nós por um momento que seja é insuportável. Se isso é verdade quanto aos pecadores regenerados, quão infinitamente mais o é quanto ao Filho amado do Pai!
Aquele que estava pendurado no madeiro maldito tinha sido desde toda eternidade o objeto do amor do Pai. Empregando a linguagem de Provérbios 8, o Salvador padecente era aquele que “estava com ele e era seu aluno”, que estava “cada dia as suas delícias”.
Seu próprio gozo fora contemplar a face do Pai. A presença do Pai fora seu lar, o seio do Pai o lugar de sua habitação, a glória do Pai ele compartilhara antes que houvesse o mundo. Durante os trinta e três anos que o Filho estivera na terra ele desfrutara de comunhão ininterrupta com o Pai. Nunca um pensamento que estivesse fora da harmonia com a mente do Pai, nunca uma volição que não fosse originária da vontade do Pai, nunca um momento que fosse passado fora de sua presença consciente. O que então deve ter significado estar por ora “desamparado” por Deus! Ah, o ocultamento da face divina dele foi o mais amargo ingrediente daquele copo que o Pai tinha dado ao Redentor para beber:
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras de inigualável sentimento. Elas marcam o clímax de seus sofrimentos. Os soldados haviam cruelmente zombado dele: enfeitaram-no com a coroa de espinhos, tinham-no açoitado e esbofeteado, tinham até chegado a ponto de cuspir nele e arrancar seus cabelos. Despojaram-no de seus vestidos e o expuseram a uma vergonha explícita. Todavia, sofreu tudo isso em silêncio. Perfuraram suas mãos e seus pés, porém suportou a cruz, a despeito da ignomínia. A multidão vulgar escarnecia dele, e os ladrões com ele crucificados lhe lançavam em rosto os mesmos insultos; todavia, não abriu sua boca. Em resposta a tudo que sofria das mãos dos homens, nenhum clamor escapou de seus lábios. Mas agora, quando a ira concentrada do céu desce sobre si, ele exclama: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Seguramente, esse era um clamor que deveria enternecer o mais duro coração!
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras do mais profundo mistério. Outrora o Senhor Jeová não abandonava seu povo.
Repetidamente ele foi seu refúgio na tribulação. Quando Israel esteve em cruel servidão clamou a Deus, e ele o ouviu. Quando ficou impotente diante do Mar Vermelho, ele veio em seu auxílio e o livrou de seus inimigos. Quando os três hebreus foram lançados dentro da fornalha de fogo, o Senhor esteve com eles. Mas daqui, da cruz, sobe um clamor mais dorido e agonizante do que jamais subira da terra do Egito, entretanto, não ouve resposta alguma! Eis aí uma situação de longe mais alarmante do
que a crise do Mar Vermelho: inimigos mais implacáveis cercaram esse, e no entanto não houve livramento algum! Eis aí um fogo que ardia infinitamente mais do que o da fornalha de Nabucodonosor, mas sem ninguém ao seu lado para confortar! Ele é abandonado por Deus!
Não obstante, esse clamor do Salvador padecente é profundamente misterioso. De início clamou, “Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem”, e isso podemos compreender, pois está em boa conformidade com seu coração compassivo. Outra vez abrira ele sua boca, para dizer ao ladrão penitente, “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no Paraíso”, e isso também podemos entender bem, pois está totalmente de acordo com sua graça para com os pecadores. Uma vez mais seus lábios se moveram — para sua mãe, “Mulher, eis aí o teu filho”; para o amado João, “Eis aí tua mãe” — e isso também podemos apreciar. Porém, na próxima vez em que ele abre sua boca, um brado nos faz ficar sobressaltados e desconcertados. Outrora disse Davi, “Nunca vi desamparado o justo”, mas aqui vemos o Justo desamparado.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Essas são palavras da mais profunda solenidade. Esse foi um clamor que fez a própria terra estremecer, e que reverberou por todo o universo. Ah, que mente é suficiente para contemplar essa maravilha das maravilhas! Que mente é capaz de analisar o sentido desse estupendo clamor que rasgou as trevas medonhas! “Por que me desamparaste?” são palavras que nos conduzem para dentro do Santo dos Santos. Aqui, se é que não o é assim também em todo lugar, é supremamente conveniente que removamos os sapatos da curiosidade carnal. As especulações são profanas; podemos apenas nos maravilhar e adorar.
Mas, embora tais palavras sejam de importância chocante, de assustadora miséria, do mais profundo mistério, de singular sentimento, e de profunda solenidade, entretanto, não somos deixados em ignorância quanto ao significado. Verdade, tal clamor foi profundamente misterioso, todavia, é capaz da mais abençoada solução. As Escrituras Sagradas não deixam margem para dúvidas de que tais palavras de inigualável tristeza foram tanto a mais completa manifestação do amor divino e da mostra mais inspiradora de terror da inflexível justiça divina. Possa todo pensamento ser agora trazido cativo a Cristo e nossos corações ficarem devidamente graves enquanto analisamos mais de perto esse quarto pronunciamento do Salvador agonizante.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
1. Aqui vemos a enormidade do pecado e o caráter de seu salário.
O Senhor Jesus foi crucificado ao meio-dia, e na luz do Calvário tudo foi revelado em seu verdadeiro caráter. Ali, a própria natureza das coisas foi plena e finalmente exibida. A depravação do coração humano — seu ódio por Deus, sua ingratidão abjeta, seu amor às trevas no lugar da luz, sua preferência por um assassino no lugar do Príncipe da vida — foi horrivelmente mostrada. O terrível caráter do diabo — sua hostilidade contra Deus, sua insaciável inimizade contra Cristo, seu poder de pôr no coração do homem a traição ao Salvador — foi plenamente exposta. Assim, também, as perfeições da natureza divina — a inefável santidade de Deus, sua justiça inflexível, sua ira terrível, sua graça sem par — foi de todo conhecida. E ali também foi que o pecado — sua vileza, sua torpeza, sua não sujeição a leis — foi claramente exibido. Aqui nós vemos a horrenda extensão a que o pecado chegará. Em sua primeira manifestação ele tomou a forma de suicídio, pois Adão destruiu sua própria vida espiritual; em seguida o vemos em forma de fratricídio — Caim matando seu próprio irmão; mas na cruz o clímax é atingido, com o deicídio — o homem crucificando o Filho de Deus.
Porém, não apenas vemos a hediondez do pecado na cruz, mas ali também descobrimos o caráter de seu horrível pecado. “O salário do pecado é a morte” (Rm 6.23). A morte é a herança do pecado. “Por um homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens por isso que todos pecaram” (Rm 5.12). Não houvesse pecado nenhum, não haveria morte alguma. Mas o que é “morte”? É aquele pavoroso silêncio que reina supremo após se dar o último fôlego e o corpo ficar sem movimentos? É aquela cadavérica palidez que vem sobre a face quando o sangue cessa de circular e os olhos ficam sem expressão? Sim, é isso, mas muito mais. Algo de longe mais patético e trágico do que a dissolução física está contido no termo.
O salário do pecado é a morte espiritual. O pecado separa de Deus, que é a fonte de toda vida. Isso foi manifestado no Éden. Antes da Queda, Adão desfrutava de bendita companhia com seu Criador, mas na própria véspera daquele dia que marcou a entrada do pecado em nosso mundo, enquanto o Senhor Deus entrava no Jardim e sua voz era ouvida por nossos primeiros pais, o par culpado escondeu-se entre as árvores do lugar.
Não mais poderiam eles gozar de comunhão com ele que é sempre Luz, antes, ficaram alienados dele. Assim, também, se deu com Caim: quando interrogado pelo Senhor ele disse: “Da tua face me esconderei” (Gn 4.14). O pecado exclui da presença de Deus.
Essa foi a grande lição ensinada a Israel. O trono de Jeová estava no meio deles, todavia não era mais acessível. Ele habitava entre os querubins no santo dos santos e a esse ninguém poderia chegar, com exceção do sumo sacerdote, e ele, apenas um dia por ano, levando sangue consigo. O véu pendurado tanto no tabernáculo quanto no templo, vedando o acesso ao trono divino, testemunhava o solene fato de que o pecado separa dele.
O salário do pecado é a morte, não somente física, mas espiritual; não meramente natural mas, essencialmente, morte penal. O que é morte física? É a separação da alma e do espírito do corpo. Assim, a morte penal é a separação da alma e do espírito de Deus. A palavra da verdade fala daquela que vive em prazer como “embora viva, está morta” (1Tm 5.6, ARA). Repare, ainda, como a maravilhosa parábola do filho pródigo ilustra a força do termo “morte”. Após o retorno do pródigo o pai disse: “Este meu filho estava morto, e reviveu, tinha-se perdido, e foi achado” (Lc 15.24). Enquanto ele estava na “terra longínqua”, não havia cessado de existir; não, ele não estava morto fisicamente, mas espiritualmente — estava alienado e separado de seu pai!
Agora, na cruz, o Senhor Jesus estava recebendo o salário que era devido por seu povo. Ele não tinha pecado algum que fosse seu, pois era o Santo de Deus. Mas estava levando nossos pecados em seu próprio corpo no madeiro (1Pd 2.24). Ele tinha tomado o nosso lugar e estava padecendo o Justo pelo injusto. Ele estava carregando o castigo que nos traz a paz ; e o salário de nossos pecados, o sofrimento e castigo que era devido a nós, era “morte”. Não meramente física, mas penal; e, como dissemos, isso significava separação de Deus, e daí o Salvador ter clamado: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Assim, também, será com aquele que for impenitente até o fim. O pavoroso destino que aguarda o perdido é, dessa forma, exposto: “os quais sofrerão, como castigo, a perdição eterna, banidos da face do senhor e da glória do seu poder” (2Ts 1.9, ARA). Separação eterna daquele que é a fonte de todo bem e a origem de toda bênção. Ao ímpio, Cristo dirá: “Apartai-vos de mim, malditos” — banimento de sua presença, um eterno exílio de Deus, é o que espera o condenado eternamente. Essa é a razão por que o Lago de Fogo — a eterna morada daqueles cujos nomes não estão escritos no livro da vida — é designada “A Segunda Morte” (Ap 20.14). Não que haverá extinção do ser, mas separação eterna do Senhor da Vida, uma separação a qual Cristo sofreu por três horas enquanto estava pendurado no lugar do pecador. Na cruz, então, Cristo recebeu o salário do pecado.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
2. Aqui vemos a absoluta santidade e a inflexível justiça de Deus.
A tragédia do Calvário deve ser vista de pelo menos quatro pontos de vista. Na cruz o homem fez uma obra: ele mostrou sua depravação ao pegar o Perfeito e com “mãos iníquas” pregando-o no madeiro. Na cruz Satanás fez uma obra: ele manifestou sua insaciável inimizade contra a semente da mulher ferindo o calcanhar dele. Na cruz o Senhor Jesus fez uma obra: morreu o Justo pelos injustos para pudesse nos trazer a Deus. Na cruz Deus fez uma obra: ele exibiu sua santidade e satisfez sua justiça derramando sua ira sobre aquele que foi feito pecado por nós.
Que pena humana é capaz ou apropriada para escrever acerca da imaculada santidade divina! Tão santo é Deus que o mortal não pode vê-lo em seu ser essencial, e viver. Tão santo é Deus que os próprios céus não são puros aos seus olhos. Tão santo é Deus que até os serafins cobriam suas faces com véus diante dele. Tão santo é Deus que, quando Abraão ficou de pé perante ele, clamou, “Sou pó e cinza” (Gn 18.27). Tão santo é Deus que, quando Jó entrou em sua presença, disse: “Por isso me abomino” (Jó 42.6). Tão santo é Deus que, quando Isaías teve uma visão de sua glória, exclamou: “Ai de mim, que vou perecendo porque... os meus olhos viram o rei, o Senhor dos Exércitos” (Is 6.5). Tão santo é Deus que, quando Daniel o contemplou numa manifestação teofânica, declarou: “Não ficou força em mim; desfigurou-se a feição do meu rosto” (Dn 10.8). Tão santo é Deus que nos é dito: “Tu és tão puro de olhos que não podes ver o mal, e que não podes contemplar a perversidade” (Hc 1.13). E foi porque o Salvador estava levando nossos pecados que o trinamente santo Deus não o contemplou, virou sua face dele, abandonou-o. O Senhor fez que se encontrasse em Jesus as iniqüidades de nós todos: e nossos pecados estando sobre ele como nosso substituto, a ira divina contra as nossas ofensas devesse passar sobre nossa oferta de pecado.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Essa era uma questão que nenhum daqueles ao redor da cruz podia ter respondido; era uma questão que, ao mesmo tempo, nenhum dos apóstolos podia ter respondido; sim, era uma questão que havia confundido os anjos no céu, deixando-os sem resposta. Mas o Senhor Jesus havia respondido sua própria questão, e sua resposta é achada no Salmo 22. Esse salmo fornecia a mais maravilhosa predição profética de seus sofrimentos. Ele abre com as próprias palavras da quarta elocução de nosso Salvador sobre a cruz, e é seguido por mais soluços de agonia no mesmo tom até que, no versículo 3, achamo-lo dizendo — “Tu és Santo”. Ele se queixa, não da injustiça, antes reconhece a retidão de Deus — tu és santo e justo em cobrar de minhas mãos toda a dívida para a qual me fiz fiador; tenho de responder pela totalidade dos pecados de todo meu povo e, por conseguinte, ó Deus, és parte legítima em me golpear com tua espada desperta. Tu és santo; tu és puro quando julgas.
Na cruz, então, como em nenhum outro lugar, vemos a infinita malignidade do pecado e da justiça divina na punição desse. Não foi o mundo antigo coberto pelas águas? Não foram Sodoma e Gomorra destruídas por uma tempestade de fogo e enxofre? Não foram as pragas enviadas sobre o Egito e Faraó e seus exércitos afogados no Mar Vermelho? Nesses casos, o demérito do pecado e o ódio de Deus por ele puderam ser vistos; mas muito mais o é aqui, em que Cristo é desamparado por ele. Vá ao Gólgota e veja o Homem que é Companheiro de Jeová bebendo do copo da indignação do Pai, castigado pela espada da justiça divina, ferido pelo próprio Senhor, sofrendo até a morte, pois Deus “não poupou seu próprio Filho” quando o pendurou no lugar do pecador.
Eis como a própria natureza antecipara a terrível tragédia — o próprio contorno do chão se assemelha a um crânio. Eis a terra tremendo sob a poderosa carga da ira despejada. Eis os céus e o sol fugirem de uma tal cena, e a terra ser coberta de trevas. Aqui podemos ver a pavorosa cólera de um Deus que vinga o pecado. Nem todos os relâmpagos do julgamento divino que foram liberados nos tempos do Antigo Testamento, nem todas as taças da ira que serão despejadas sobre uma Cristandade apóstata durante os tempos sem paralelos da Grande Tribulação, nem todo choro e lamento e ranger de dentes dos condenados para sempre no Lago de Fogo jamais deram ou mesmo darão uma tal demonstração da inflexível justiça de Deus e de sua inefável santidade, de seu infinito ódio ao pecado, como o fez a ira divina que ardeu contra seu próprio Filho na cruz. Porque estava sofrendo o horripilante julgamento do pecado, foi desamparado por Deus. Aquele que era o Santo, cuja própria repulsa ao pecado era infinita, que era a pureza encarnada (1Jo 3.3), [Deus] “o fez pecado por nós” (2Co 5.21); portanto, ele se curvou mesmo perante a tempestade de ira, na qual foi mostrado o desprazer divino contra os incontáveis pecados de uma grande multidão que homem algum pode numerar. Essa, então, é a verdadeira explicação do Calvário. O santo caráter de Deus não podia fazer nada senão julgar o pecado, mesmo que fosse achado no próprio Cristo. Na cruz, pois, a justiça divina foi satisfeita e sua santidade reivindicada.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
3. Vemos aqui a explicação do Getsêmane.
À medida que nosso bendito Senhor se aproximava da cruz o horizonte para ele se escurecia mais e mais. Desde a mais tenra infância ele havia sofrido por causa do homem; desde o princípio de seu ministério público ele havia sofrido por causa de Satanás; porém, na cruz ele devia sofrer na mão de Deus. O próprio Jeová devia ferir o Salvador, e era isso que obscurecia tudo o mais. No Getsêmane ele adentrou na escuridão das três horas de trevas na cruz. Eis o porquê de ele deixar os três discípulos nas imediações do jardim, pois ele devia pisar o lagar sozinho. “A minha alma está profundamente triste” , ele clamou. Isso não era recuar, horrorizado, antecipando uma morte cruel. Não era o pensamento da traição por seu próprio amigo com quem estava familiarizado, nem da deserção por seus estimados discípulos na hora da crise, nem da expectativa das zombarias e ultrajes, dos açoites e dos pregos, que oprimia sua alma. Não, toda essa angústia da mais severa ao seu espírito sensível, nada era se comparada com a que ele teve de suportar como Portador do Pecado.
“Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmane, e disse aos seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar. E levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito. Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até à morte; ficai aqui, e velai comigo. E, indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.” (Mt 26.36-39).
Aqui ele observa as negras nuvens surgindo, vê a terrível tempestade chegando, ele premeditava o inexprimível horror daquelas três horas de trevas e tudo o que elas continham. “A minha alma está profundamente triste”, ele clama. O grego é mais enfático. Ele estava cercado de tristeza. Ele estava completamente imerso na ira divina. Todas as faculdades e poderes de sua alma estavam esmagados pela angústia.
S. Marcos emprega uma outra forma de expressão — “Ele começou a ficar extremamente atônito” (14.33, KJV). O original traz o significado de a maior extremidade do pavor, como a que faz com que alguém ficar de cabelo em pé e o corpo arrepiado. E, acrescenta Marcos, “e a ficar muito triste”, o que denota que havia um total abatimento de espírito; seu coração estava derretido como cera à vista do terrível cálice.
Mas o evangelista Lucas, dentre todos, é o que usa os termos mais fortes: “E, posto em agonia, orava mais intensamente. E o seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão” (Lc 22.44). A palavra grega para “agonia” aqui, quer dizer estar envolvido em um combate. Antes, ele combatera as oposições dos homens e as do diabo, mas agora ele encara o cálice que Deus lhe dá a beber. Era o que continha a ira não diluída do ódio divino para com o pecado. Isso explica o porquê dele dizer: “Se queres, passa de mim este cálice”. O “cálice” é o símbolo de comunhão, e não poderia haver comunhão alguma em sua ira, mas somente em seu amor . Entretanto, ainda que isso significasse ser cortado daquela, ele adiciona: “Todavia, não se faça a minha vontade, mas a tua”. Todavia, tão grande foi sua agonia que “seu suor tornou-se em grandes gotas de sangue, que corriam até o chão”.
Pensamos que não pode haver a menor dúvida de que o Salvador verteu gotas de sangue de verdade. Seria diminuir aí o significado dizer que seu suor parecia sangue, mas não o era realmente. Parece-nos que a ênfase está posta na palavra “sangue”. Ele verteu sangue — exatamente como grandes gotas de água comumente. E vemos aqui a adequação do lugar escolhido para ser a cena desse terrível mas preliminar sofrimento. Getsêmane — ah, teu nome te denuncia! Tem o sentido de prensa de azeite. Era o lugar onde o sangue vital das olivas era extraído por pressão gota a gota! O lugar escolhido foi bem nomeado, pois. Era de fato um apropriado escabelo para a cruz, um escabelo de agonia inexprimível e sem paralelos. Na cruz, então, Cristo tomou todo o cálice que lhe foi apresentado no Getsêmane.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
4. Aqui vemos a inabalável fidelidade a Deus do Salvador.
O abandono do Redentor por Deus era um fato solene, e uma experiência que nada lhe deixava senão apoiar-se em sua fé. A posição de nosso Salvador na cruz foi absolutamente singular. Isso pode ser prontamente visto ao se contrastar suas próprias palavras faladas durante seu ministério público com aquelas proferidas na própria cruz.
Antes dizia ele: “Eu bem sei que sempre me ouves” (Jo 11.42); agora ele clama, “Deus meu, eu clamo de dia, e tu não me ouves” (Sl 22.2)! Antes dizia ele: “E aquele que me enviou está comigo; o Pai não me tem deixado só” (Jo 8.29); agora ele clama, “Deus meu, Deus meu, por que me DESAMPARASTE?” Ele não tinha absolutamente nada agora em que descansar senão o pacto e a promessa de seu Pai; e em seu clamor de angústia, sua fé se torna manifesta. Foi um brado de aflição, mas não de desconfiança.
Deus havia se retirado dele, mas note como sua alma ainda se apega a ele. Sua fé triunfou segurando-se em Deus mesmo em meio às trevas. “Deus meu”, diz, “Deus meu”, tu com quem está a infinita e perpétua força; tu que apoiaste até aqui minha humanidade e, conforme tua promessa, sustentaste teu servo — Ó, não fiques longe de mim agora. Deus meu, eu me apóio em ti. Quando todos os confortos visíveis e sensíveis haviam desaparecido, da invisível proteção e refúgio de sua fé o Salvador se vale.
No salmo de número vinte e dois a inabalável fidelidade do Salvador a Deus fica mais aparente. Nesse precioso texto fala-se das profundezas de seu coração. Ouça-o:
Em ti confiaram nossos pais; confiaram, e tu os livraste. A ti clamaram e escaparam; em ti confiaram, e não foram confundidos. Mas eu sou verme, e não homem, opróbrio dos homens e desprezado do povo. Todos os que me vêem zombam de mim, estendem os beiços e meneiam a cabeça, dizendo: Confiou no Senhor, que o livre; livre-o, pois nele tem prazer. Mas tu és o que me tiraste do ventre, o que me preservaste estando ainda aos seios de minha mãe. Sobre ti fui lançado desde a madre; tu és o meu Deus desde o ventre de minha mãe. (Sl 22.4-10).
O próprio ponto em que seus inimigos procuraram levantar contra ele foi a sua fé em Deus. Escarneceram dele por sua confiança em Jeová — se ele realmente confiava no Senhor, o Senhor livrá-lo-ia. Porém, o Salvador continuava confiando ainda que não houvesse livramento algum, confiava ainda que desamparado por um período! Foi lançado sobre Deus desde o ventre e ainda é lançado sobre ele na hora de sua morte. Ele prossegue:
Não te alongues de mim, pois a angústia está perto, e não há quem ajude. Muitos touros me cercaram; fortes touros de Basã me rodearam. Abriram contra mim suas bocas, como um leão que despedaça e que ruge. Como água me derramei, e todos os meus ossos se desconjuntaram; o meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas. A minha força se secou como um caco, e a língua se me pega ao paladar, e me puseste no pó da morte. Pois me rodearam cães; o ajuntamento dos malfeitores me cercou, transpassaram-se as minhas mãos e os pés. Poderia contar todos os meus ossos; eles vêem e me contemplam. Repartem entre si os meus vestidos, e lançam sortes sobre a minha túnica. Mas tu, Senhor, não te alongues de mim; força minha, apressa-te em socorrer-me. Livra a minha alma da espada, e a minha predileta da força do cão (Sl 22.11-20).
Jó tinha dito de Deus “Ainda que ele me mate, nele esperarei” e, embora a ira divina contra o pecado repousasse sobre Cristo, ele ainda confiava. Sim, sua fé fez mais do que confiar, ela triunfou — “Salva-me da boca do leão, sim, ouve-me, desde as pontas dos unicórnios” (Sl 22.21).
Ó, que exemplo o Salvador deixou para o seu povo! É relativamente fácil confiar em Deus quando brilha o sol, o teste chega quando tudo está em escuridão. Mas uma fé que não confia em Deus na adversidade tanto quanto na prosperidade não é a fé dos seus eleitos. Devemos ter fé por que vivermos — fé de verdade — se a tivermos para por ela morrer. O Salvador fora lançado sobre Deus desde a madre, fora lançado sobre Deus momento a momento durante todos aqueles trinta e três anos, o que não é de se maravilhar, então, que na hora da morte seja encontrado ainda lançado sobre Deus. Seus companheiros cristãos podem estar tristes contigo, podes não mais contemplar a luz da face divina. A Providência parece olhar com desdém para ti, entretanto, ainda dizes, Eli, Eli, Deus meu, Deus meu.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
5. Aqui podemos ver a base da nossa salvação.
Deus é santo e, por conseguinte, não aceita ver pecado. Ele é justo e, portanto, julga o pecado em qualquer lugar onde seja encontrado. Mas Deus também é amor: Ele se deleita na misericórdia e, em conseqüência, a infinita sabedoria ideou um meio pelo qual a justiça pudesse ser satisfeita e a misericórdia liberada para fluir aos culpados pecadores. Esse meio foi o da substituição, o justo padecendo pelo injusto. O próprio Filho de Deus foi o selecionado para ser o substituto, pois nenhum outro satisfaria. Através de Naum, a questão fora feita: “Quem pode manter-se diante do seu furor? e quem pode subsistir diante do ardor da sua ira?” (1.6, ARA). Essa questão recebeu sua resposta na adorável pessoa de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Só ele podia “manter-se”. Somente um podia levar a maldição e ainda ressurgir como um vitorioso sobre ela. Somente um podia suportar toda a ira vingativa e, todavia, glorificar a lei e torná-la digna de honra. Somente um podia suportar que seu calcanhar fosse ferido por Satanás e contudo naquela ferida destruir a ele, que tinha o poder da morte. Deus sustentou um que era “poderoso” (Sl 89.19, ARA). Um que era ninguém menos que o Companheiro de Jeová, o resplendor da sua glória, a expressa imagem de sua pessoa.
Desse modo, vemos que o amor ilimitado, a justiça inflexível e o poder onipotente combinaram-se todos para tornar possível a salvação daqueles que creem.
Na cruz, todas as nossas iniquidades foram postas sobre Cristo e, portanto, o julgamento divino recaiu sobre ele. Não havia nenhum meio de transferência de pecado sem também transferir sua pena. Tanto o pecado quanto sua punição foram transferidos para o Senhor Jesus. Na cruz ele estava fazendo propiciação, e propiciação é apenas para com Deus. Era uma questão de ir de encontro aos reclames divinos de santidade; era uma questão de satisfazer as exigências de sua justiça. Não só foi o sangue de Cristo vertido por nós, mas também vertido para Deus: ele “se entregou a si mesmo por nós, em oferta e sacrifício a Deus, em cheiro suave” (Ef 5.2). Dessa forma, isso foi prefigurado na memorável noite da Páscoa no Egito: o sangue do cordeiro deve estar onde o olho de Deus o possa ver — “Vendo eu sangue, passarei por cima de vós”.
A morte de Cristo na cruz foi uma morte maldita: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se maldição por nós; porque está escrito: Maldito todo aquele que for pendurado no madeiro” (Gl 3.13). A “maldição” é alienação de Deus. Isso fica evidente pelas palavras que Cristo ainda dirá àqueles que estarão à sua esquerda no dia de seu poder — “Apartai-vos de mim, malditos”, ele dirá (Mt 25.41). A maldição é desterro da presença e glória divinas.
Isso explica o sentido de vários tipos do Antigo Testamento. O boi que era morto anualmente no Dia da Expiação, após seu sangue ter sido espargido sobre e diante do propiciatório, era removido para um lugar “fora (exterior) do arraial” (Lv 16.27) e ali seu cadáver era queimado por inteiro. Era no centro do acampamento que Deus tinha sua residência, e a exclusão do acampamento significava banimento de sua presença. Assim também com o leproso. “Todos os dias em que a praga estiver nele, será imundo; imundo está, habitará só; a sua habitação será fora do arraial” (Lv 13.46) — isso porque aquele era o tipo encarnado do pecador. Aqui, ainda, está o antítipo da “serpente de bronze”. Por que Deus instruiu Moisés a colocar uma “serpente” sobre uma haste, e ordenou aos israelitas mordidos para olhar para ela? Imagine uma serpente como tipo de Cristo, o Santo de Deus! Sim, mas ela representava-o como “[feito] maldição por nós”, pois a serpente era a lembrança da maldição. Na cruz, então, Cristo estava cumprindo esses símbolos do Antigo Testamento. Ele estava “fora do arraial” (compare Hebreus 13.12) — separado da presença de Deus. Ele era o “leproso” — feito pecado por nós. Ele era como a “serpente de bronze” — feito maldição por nós. Daí, também, o profundo significado da coroa de espinhos — o símbolo da maldição! Levantado, coroado de espinhos, para mostrar que estava levando a maldição em nosso lugar.
Aqui, também, está a significação das três horas de trevas que cobriram a terra como uma mortalha de morte. Era uma escuridão sobrenatural. Não era noite, pois o sol estava em seu zênite. Como bem o disse o Sr. Spurgeon, “Fez-se meia-noite ao meio-dia”. Não foi eclipse algum. Os astrônomos competentes nos dizem que ao tempo da crucificação a lua estava à sua maior distância do sol. Mas esse brado de Cristo dá o sentido das trevas, enquanto que essas nos dão o significado daquele amargo brado. Somente uma coisa pode explicar tal escuridão, visto que uma coisa apenas pode interpretar tal clamor — que Cristo havia tomado o lugar dos culpados e perdidos, que ele se pôs no lugar para levar os pecados, que ele estava sofrendo o julgamento devido por seu povo, que ele que não conheceu pecado “[Deus] o fez pecado” por nós. Aquele brado foi proferido para que a nós fosse concedido saber do que se passava ali. Era a manifestação da expiação, por assim dizer, pois três (três horas) é sempre o número de manifestação. Deus é luz e as “trevas” é o sinal natural de sua repulsa. O Redentor foi deixado sozinho com o pecado do pecador: tal era a explicação das três horas de escuridão. Assim como repousará sobre o condenado eternamente uma dupla miséria no lago de fogo, a saber, a dor do sentido e a dor da perda; do mesmo modo, Cristo, em correspondência, sofreu a ira de Deus derramada sobre si e também o afastamento de sua presença e comunhão.
Para o crente a cruz é interpretada em Gálatas 2.20: “Estou crucificado com Cristo”. Ele foi o meu substituto; Deus considera-me um com o Salvador. Sua morte foi a minha. Ele foi ferido por minhas transgressões e ferido por minhas iniquidades. O pecado não foi afastado, mas descartado. Como disse alguém: “Porque Deus julgou o pecado sobre o Filho, ele agora aceita o pecador crente no Filho”.
Nossa vida está escondida com Cristo em Deus (Cl 3.3). Eu estou encerrado em Cristo porque Cristo foi excluído de Deus.
Ele sofreu em nosso lugar, ele salvou seu povo assim; A maldição que caiu sobre sua cabeça, era por direito devida por nós. A tempestade que curvou sua bendita cabeça, é apaziguada para sempre agora E o descanso divino é meu no lugar, enquanto ele está coroado de glória.
Aqui então está a base da nossa salvação. Nossos pecados foram levados. As reivindicações divinas contra nós foram plenamente satisfeitas. Cristo foi desamparado por Deus por um tempo para que pudéssemos desfrutar da sua presença para sempre. “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” Que toda alma crente dê a resposta: ele adentrou as terríveis trevas para que eu pudesse andar na luz; ele bebeu o cálice de angústia para que eu pudesse beber o cálice de gozo; ele foi abandonado para que eu pudesse ser perdoado!
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
6. Aqui vemos a suprema evidência do amor de Cristo por nós.
“Ninguém tem maior amor do que este: de dar alguém a sua vida pelos seus amigos” (Jo 15.13). Mas a grandeza do amor de Cristo pode ser estimada somente quando estamos aptos a mensurar o que estava envolvido nesse “dar” a sua vida. Como vimos, significava muito mais do que a morte física, mesmo que essa fosse de indizível vergonha, e indescritível sofrimento. Significava que ele tinha de tomar o nosso lugar e ser feito “pecado” por nós, e o que isso envolvia só pode ser julgado à luz de sua pessoa.
Imagine uma mulher perfeitamente honrada e virtuosa forçada a suportar, por algum tempo, a associação com o que há de mais vil e impuro. Imagine-a encerrada num antro de iniquidade, rodeada pelos mais grosseiros dentre os homens e as mulheres, e sem nenhum meio de escape. Você pode avaliar sua repulsa às blasfêmias de suas bocas sujas, à farra de embriaguez, à obscenidade dos arredores? Você pode formar uma opinião do que uma mulher pura sofreria em sua alma em meio a tal impureza? Mas a ilustração é, de longe, falha, pois não há nenhuma mulher absolutamente pura. Honrada, virtuosa, moralmente pura, sim, porém, pura no sentido de ser sem pecado, espiritualmente pura, não. Mas Cristo era puro; absolutamente puro. Ele era o Santo. Ele tinha uma infinita aversão ao pecado. Ele o aborrecia. Sua alma santa se esquivava dele. Mas, na cruz, nossas iniquidades foram todas postas sobre ele, e o pecado — essa coisa vil — envolvia-se em torno dele como uma horrível serpente enrolada. E, contudo, ele de bom grado sofreu por nós! Por quê? Porque nos amou: “Como havia amado os seus, que estavam no mundo, amou-os até ao fim” (Jo 13.1).
Mas mais ainda: a grandeza do amor de Cristo por nós pode ser avaliada apenas quando somos capazes de medir a ira divina que foi derramada sobre ele. Era disso que sua alma se esquivava. O que isso significou para ele, o que custou a ele, pode se saber em parte por um minucioso exame dos salmos nos quais se nos permite ouvir algo de seus patéticos solilóquios e petições a Deus. Falando com antecipação, o próprio Senhor Jesus pelo Espírito clamou através de Davi:
“Livra-me, ó Deus, pois as águas entraram até à minha alma. Atolei-me em profundo lamaçal, onde se não pode estar em pé; entrei na profundeza das águas, onde a corrente me leva. Estou cansado de clamar; secou-se-me a garganta; os meus olhos desfalecem esperando o meu Deus.
Tira-me do lamaçal, e não me deixes atolar; seja eu livre dos que me aborrecem, e das profundezas das águas. Não me leve a corrente das águas e não me sorva o abismo, nem o poço cerre a sua boca sobre mim.
E não escondas o teu rosto do teu servo, porque estou angustiado; ouve-me depressa. Aproxima-te da minha alma, e resgata-a; livra-me por causa dos meus inimigos. Bem conheces a minha afronta, e a minha vergonha, e a minha confusão; diante de ti estão todos os meus adversários. Afrontas me quebrantaram o coração, e estou fraquíssimo. Esperei por alguém que tivesse compaixão, mas não houve nenhum; e por consoladores, mas não os achei.” (Sl 69.1-3, 14, 15, 17-20) E outra vez: “Um abismo chama outro abismo, ao ruído das tuas catadupas; todas as tuas ondas e vagas têm passado sobre mim” (Sl 42.7). A aversão divina ao pecado sobreveio impetuosa e rebentou sobre o Portador do Pecado. Aguardando de modo expectante a terrível angústia da cruz, ele clamou através de Jeremias: “Não vos comove isto a todos vós que passais pelo caminho? Atendei, e vede, se há dor como a minha dor, que veio sobre mim, com que me entristeceu o Senhor, no dia do furor da sua ira” (Lm 1.12). Essas são algumas das passagens que nos sugerem e pelas quais podemos julgar o indizível horror com que o Santo contemplava aquelas três horas na cruz, horas nas quais estava condensado o equivalente a uma eternidade no inferno. O amado do Pai deve ter a luz da face de Deus ocultada dele; ele deve ser deixado sozinho nas trevas exteriores.
Aqui tinha amor incomparável e imensurável. “Se queres, passa de mim este cálice”, ele clamou. Mas não era possível que seu povo fosse salvo a menos que ele bebesse até a última gota daquele copo de desgraça e ira; e, porque não havia nenhum outro que podia bebê-lo, ele o fez. Bendito seja seu nome! Onde o pecado havia trazido o homem, o amor trouxe o Salvador.
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
7. Aqui vemos a destruição da “esperança maior”.
Esse clamor do Salvador prenuncia a condição final de toda alma perdida — abandonada por Deus! A fidelidade nos obriga a alertar o leitor acerca dos falsos ensinos de hoje. É-nos dito que Deus ama a todos, e que ele é misericordioso demais para em algum tempo levar a cabo as ameaças de sua palavra.
Exatamente como a antiga serpente argumentou com Eva. Deus tinha dito: “No dia em que dela comeres, certamente morrerás”. A serpente disse: “Certamente não morrereis”. Mas qual palavra evidenciou ser verdadeira? Não a do diabo, pois ele é mentiroso desde o princípio . A ameaça divina foi cumprida, e nossos primeiros pais morreram espiritualmente no dia em que desobedeceram à sua ordem. Isso se provará também num dia vindouro.
Deus é misericordioso; o fato dele ter provido um Salvador, leitor, demonstra-o. O fato de que ele convida você para receber a Cristo como seu Salvador evidencia sua misericórdia. O fato de que ele é tão longânime com você, que suporta a sua obstinada rebelião até agora, que prolongou o seu dia de graça até o presente momento, prova-o. Mas há um limite para a sua misericórdia. O dia da misericórdia em breve findará. A porta de esperança em breve será trancada. A morte pode rapidamente ceifar a ti, e após essa vem “o juízo”. E no Dia do Juízo Deus vai tratar com justiça e não com misericórdia. Ele vingará a misericórdia da qual você desdenhou. Ele executará a sentença de condenação já passada sobre você: “Quem não crer será condenado” (Mc 16.16).
Não repetiremos novamente o que já dissemos em detalhes; basta por ora lembrar o leitor mais uma vez como esse brado de Cristo testemunha do ódio divino ao pecado. Porque é justo e santo, Deus deve julgar o pecado onde quer que ele seja encontrado. Se então ele não poupou o Senhor Jesus quando o pecado foi achado sobre ele, que esperança pode haver, leitor não salvo, de que ele poupará a ti quando estiveres diante dele no grande trono branco com pecado sobre ti? Se Deus derramou sua ira em Cristo enquanto pendurado como fiador de seu povo, fique certo de que ele, com a mais absoluta certeza, derrama-la-á sobre você, se morrer em seus pecados. A palavra da verdade é explícita: “Aquele que não crê no Filho não verá a vida, mas a ira de Deus sobre ele permanece” (Jo 3.36). Deus “não poupou” seu próprio Filho quando tomou o lugar do pecador, e não poupará a quem rejeita o Salvador. Cristo ficou separado de Deus por três horas, e se você finalmente rejeitá-lo como seu Salvador, também o será, para sempre — “os quais sofrerão, como castigo, a perdição eterna, banidos da face do senhor” (2Ts 1.9, ARA).
“Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?”
Eis aqui um Brado de Desolação — Leitor, possa você nunca ecoá-lo.
Eis aqui um Brado de Separação — Leitor, possa você jamais experimentá-lo.
Eis aqui um Brado de Expiação — Leitor, possa você apropriar-se de suas virtudes salvíficas.
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RETIRADO DO EBOOK "OS SETE BRADOS DO SALVADOR SOBRE A CRUZ."
ARTHUR W. PINK
Traduzido do original em inglês
The Seven Sayings of the Saviour on the Cross (1919)
Tradução: Vanderson Moura da Silva
Crédito: Monergismo.com
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