Agostinho e as Consequências da Queda - R. C. Sproul

14:37
Agostinho e as Consequências da Queda
por R. C. Sproul     
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        Philip Schaff lista oito consequências distintas da queda desenvolvidas por Agostinho. Nós as pesquisaremos com observações.

        Primeira, a própria queda. Desde que o homem foi criado com a posse peccare, ele teve a capacidade para cair desde o começo. Ele foi criado bom, mas também mutável. Esta possibilidade de pecar foi mais tarde chamada por Karl Barth como “possibilidade impossível.” Esta, obviamente, é uma declaração absurda, uma contradição veraz de termos. Desde que Barth não se preocupava com as contradições, não achou dificuldade em usar esta frase. Mas talvez tenha usado deliberadamente esta contradição dissonante como um artifício literário para mostrar a incompreensibilidade de uma boa criatura cair em pecado. A queda é uma irracionalidade manifesta.

        Para Agostinho, a severidade da queda é vista através de seu contraste severo com a sublimidade da condição original do homem. A palavra queda dificilmente faz justiça à idéia de salto das alturas exaltadas para a profundidade abismal. Schaff comenta: “A queda de Adão apresenta-se como a maior e a mais digna de castigo se considerarmos, primeiramente, a altura que ele ocupava, a imagem divina na qual foi criado; então, a simplicidade do mandamento, e [a] tranquilidade de obedecê-lo, na abundância de todos os tipos de frutos no paraíso; e, finalmente, a sanção do mais terrível castigo do seu Criador e mais formidável Benfeitor.” [1]

        A segunda consequência do pecado é a perda da liberdade. Desde que essa dimensão do pensamento de Agostinho é tão crítica à toda a controvérsia sobre o livre arbítrio, nós a desenvolveremos de forma mais completa mais tarde. Por ora, diremos rapidamente que algo desastroso aconteceu à vontade humana como resultado da queda. Na criação, o homem tinha uma inclinação positiva para o bem e para amar a Deus. Embora fosse possível que o homem pecasse, não havia necessidade moral para que assim agisse. Como resultado da queda, o homem passou a ser escravo do mal. A vontade caída tornou-se uma fonte de mal no lugar de uma fonte do bem.

        A terceira consequência do pecado é a obstrução do conhecimento. A capacidade intelectual do homem era muito maior na criação do que após a queda. As consequências da queda incluem o que os teólogos referem-se como os “efeitos intelectuais do pecado.” A palavra intelectual é derivada da palavra grega para “mente”, que é nous. Originalmente, a mente do homem podia absorver e analisar a informação muito melhor e mais acuradamente do que podemos agora. Ele podia entender a verdade corretamente, sem distorção. No entanto, o homem não era dotado por Deus com o atributo divino da onisciência. Este é um dos atributos “incomunicáveis” que Deus não pode de fato “comunicar” à criatura. Um ser onisciente, que tem uma compreensão infinita e eterna de toda a extensão da realidade, deve ser eterno e infinito. Consequentemente, Adão tinha um limite no seu conhecimento dotado e estava sobre uma curva de aprendizado desde o início. No entanto, sua capacidade para aprender não era obstruída pelo pecado original. Na criação, o processo de aprendizado era fácil. A mente do homem não estava obscurecida pelo pecado.

        Depois da queda, o homem ainda possui uma mente. Ele ainda pode pensar. Ainda pode raciocinar. Ele não perdeu a faculdade da mente. A faculdade permanece; a facilidade está perdida. O que foi fácil uma vez, agora é difícil. Nossa habilidade para raciocinar foi claramente afetada. Somos agora inclinados para o pensamento confuso e para cometer erros lógicos. Fazemos inferências ilegítimas a partir de dados e cometemos falácias lógicas. Nossos argumentos não são sempre sadios.

        Dois fatores principais estão envolvidos aqui. O primeiro é o enfraquecimento do poder da mente e de sua faculdade de pensamento. O segundo é a influência negativa da predisposição pecaminosa e do preconceito, especialmente com relação ao nosso entendimento do bem e de Deus. A Escritura fala das nossas mentes sendo “obscurecidas” e “réprobas.” Recusamos ter Deus em nosso pensamento. Isto não é um lapso mental isolado mas um lapso moral ao extremo.

        Há uma analogia entre a função da mente e a função do corpo após a queda. Ainda temos corpos que exibem força física. O corpo ainda trabalha. Mas o trabalho do corpo agora é acompanhado de suor e fadiga. Semelhantemente, a mente ainda trabalha, mas o pensamento correto é laborioso para a mente.

        A quarta consequência do pecado é a perda da graça de Deus. Na criação, Deus proveu o homem com um adjutorium , uma assistência graciosa certa para o bem. Após a queda, Deus retirou da criatura esta graça assistente. Em um sentido, o homem foi entregue ao pecado, para seguir os planos maus da sua mente. Seu coração é agora cheio de dolo e seus desejos são continuamente maus. Com certeza ainda permanece uma graça pela qual Deus, através da sua lei e providência, contém o mal humano. Ele o mantém em confronto até um certo ponto. Mas este freio divino não é a assistência positiva da graça para o bem mas um freio negativo do mal.

        A quinta consequência do pecado é a perda do paraíso. Parte da maldição que se seguiu à queda foi a expulsão do Éden. Deus baniu Adão e Eva do jardim paraíso e colocou na entrada do Éden um sentinela angelical que empunhava uma espada flamejante. Este sentinela prevenia que Adão e Eva voltassem ao jardim. Consequentemente, o ambiente no qual eles gozavam da presença imediata de Deus e da comunhão com ele foi retirado. Com o exílio, veio também as maldições sobre a mulher (ela deveria experimentar dor ao dar à luz), sobre a serpente (esta iria rastejar no pó sobre o seu ventre), e sobre o homem (ele iria, com suor e fadiga, trabalhar o solo que resistiria aos seus esforços). O novo ambiente é marcado pela presença de ervas daninhas, espinhos e urzes. Não havia ervas daninhas no Jardim do Éden.

        A sexta consequência é a presença da concupiscência. A noção da concupiscência, que aparece do começo ao fim dos escritos de Agostinho, envolve uma certa predileção para o que é sensual. Não é a própria sensualidade mas uma inclinação a ela. Envolve uma certa “tendência” ou inclinação da vontade em direção à lascívia da carne, e esta concupiscência guerreia contra o espírito. “Originalmente, o corpo era tão alegremente obediente ao espírito quanto o homem a Deus,” Schaff comenta. “Havia apenas uma vontade em exercício. Com a queda, esta harmonia bonita foi quebrada e o antagonismo, que Paulo descreve no sétimo capítulo da epístola aos Romanos, surgiu...logo, concupiscentia é substancialmente o mesmo que Paulo chama de 'carne' no mau sentido. Não é a constituição sensual em si mesma, mas sua predominância sobre a natureza mais alta e racional do homem...A concupiscência, então, não é algo meramente corpóreo mais do que o sarx bíblico, mas tem o seu lugar na alma, sem a qual nenhuma concupiscência surge.” [2]

        A sétima conseqüência do pecado é a morte física. Na criação, o homem tinha tanto a posse mori quanto a posse non mori , a capacidade para morrer ou para não morrer. Deus advertiu Adão de que se ele comesse do fruto proibido, morreria. Esta advertência foi negada pela serpente, que alegou que Adão e Eva não morreriam mas se tornariam como deuses.

        Notamos rapidamente que Deus havia ameaçado a morte imediata: “no dia em que dela comeres, certamente morrerás” (Gn 2.17). Porém Adão e Eva não experimentaram a morte física (thanatos) no mesmo dia da sua transgressão. Isto tem levado alguns a concluírem que a penalidade “real” para o pecado foi a morte espiritual, a qual aconteceu imediatamente. Mas, para o texto e para Agostinho, o castigo para o pecado não foi limitado à morte espiritual. Ele incluía a morte física também, a qual Adão e Eva eventualmente experimentaram. Este foi o grande inimigo que Cristo mais tarde conquistaria para seu povo. Como um resultado da queda, a morte física é agora uma necessidade, não uma mera possibilidade.

        Agostinho mencionou que para Adão e Eva, a morte física não foi totalmente adiada até que respirassem seu último fôlego. A morte física começou no momento em que transgrediram. A partir daquele momento, as ruínas da morte- envelhecimento, declínio físico e doenças- acompanharam a vida humana. Desde o pecado de Adão, cada bebê nasce em meio às dores de parto. Com as dores do parto e o primeiro choro do infante, o processo da morte é inaugurado. Toda a vida é parte deste processo. A vida marcha inexoravelmente em direção à sepultura. Este é o preço do pecado.

        A oitava e última consequência do pecado é a culpa hereditária. O pecado original significa que o pecado não é meramente uma ação, mas também uma condição transmitida de nossos primeiros pais para cada um de nós. O pecado é um habitus, algo que “habita” a nossa natureza humana. Este estado, condição ou hábito de pecar continua através da procriação, de geração a geração. O pecado original é transmitido diretamente através do processo natural de geração humana? Ou Deus direta e imediatamente cria cada alma outra vez? Agostinho oscilava entre estas duas escolas de pensamento (conhecidas como traduciasnismo e criacionismo) porque ele pensava que a Escritura não respondia a questão de forma definitiva.

        Estas consequências do pecado original são o que Pelágio achou tão odioso. Ele viu uma certa injustiça na descendência de Adão sendo afetada tão adversamente por causa das ações de Adão. Agostinho, por outro lado, considerava o pecado original como um castigo justo para Adão e para todos aqueles a quem ele representava. Ele escreve no The City of God :

            O pecado [de nossos primeiros pais] foi um desprezo à autoridade de Deus. Deus criou o homem; ele o fez à sua própria imagem; ele o estabeleceu acima dos outros animais; ele o colocou no Paraíso; o enriqueceu com todo o tipo de abundância e segurança; não lhe impôs nem muitos, nem grandes nem difíceis mandamentos mas, a fim de tornar uma obediência sadia fácil para ele, lhe deu um único pequeno e leve preceito pelo qual lembraria à criatura, cujo serviço deveria ser livre, de que ele era Senhor. Consequentemente, foi justa a condenação que se seguiu e uma condenação tal que o homem, que através da manutenção dos mandamentos deveria ter sido espiritual até mesmo em sua carne, se tornou carnal até mesmo em seu espírito. E assim como em seu orgulho, ele buscou ser sua própria satisfação, Deus, em sua justiça, o abandonou em si mesmo, não para viver na independência absoluta que ansiava mas, no lugar da liberdade que desejava, para viver insatisfeito consigo mesmo em uma sujeição dura e miserável a quem, através do pecado, havia se submetido. Ele foi condenado, a despeito de si mesmo, a morrer em corpo assim como havia se tornado, por vontade própria, morto em espírito, condenado até mesmo à morte eterna (não tivesse a graça de Deus o libertado) porque havia renunciado à vida eterna. Qualquer um que pense que este castigo foi excessivo ou injusto, mostra a sua inabilidade para medir a grande iniquidade de pecar onde o pecado podia tão facilmente ser evitado. [3]

        

        O fato da controvérsia pelagiana ter surgido pouco tempo depois da controvérsia donatista, que envolvia o tema do batismo, é significante. O batismo de infantes veio para a dianteira na controvérsia pelagiana precisamente porque os pelagianos insistiam que os infantes nasciam livres do pecado original. Na igreja, o batismo para infantes geralmente considerava o envolvimento na remissão de pecados. Agostinho, que sustentava a noção de que o batismo se relacionava ao perdão do pecado original e da culpa, disse de Pelágio: “Se você perguntasse a ele qual é o pecado que ele supõe ser cancelado para eles, ele afirmaria que eles não tinham nenhum.” [4]

        Schaff observa: “...o batismo, de acordo com Agostinho, remove apenas a culpa (reatus) do pecado original, não o próprio pecado (concupiscentia). Na procriação, o agente não é o espírito regenerado, mas a natureza que ainda está sob o domínio da concupiscentia. 'Pais regenerados não produzem como filhos de Deus, mas como filhos do mundo'”.

        A doutrina do pecado original é central para o entendimento de Agostinho tanto da graça quanto do livre arbítrio. O pecado original faz com que a graça seja necessária. O pecado original define a escravidão da vontade. A visão de alguém da graça e do livre arbítrio é inseparavelmente relacionada ao seu entendimento do pecado original. Aquele que adota a visão de Agostinho do pecado original é compelido a investigar o seu entendimento da graça e da vontade caída.

        

        NOTAS:

       [1] - Philip Schaff, History of the Christian Church, 8 vols. (1907-10; Grand Rapids: Eerdmans, 1952-53), 3:825.

        [2] - Ibid., 3:826-27.

      [3] - Agostinho, The City of God, em Agostinho, Basic Writings, 2:260 (14.15). Em nome da leitura, desmembrei uma sentença extremamente longa ("consequentemente, porque o pecado era um desprezo à autoridade de Deus...ele renegou a vida eterna.") em cinco sentenças.

        [4] - Schaff, History of the Christian Church , 3:839.

                 
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        Fonte: R. C. Sproul. Sola Gratia. Cultura Cristã.
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