Comentário de Gálatas 3:6 - João Calvino

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“Assim como Abraão creu em Deus, e isso lhe foi imputado como justiça” (Gálatas 3:6)

É mister primeiramente indagar o que Paulo pretendia dizer com o vocábulo fé; em segundo lugar. O que significa Justiça; e, em terceiro lugar, por que a fé é representada como a causa da justificação. Fé, neste versículo, não deve ser entendida como um tipo de convicção que os homens podem ter a respeito da verdade de Deus. Embora Caim tenha exercido inúmeras vezes fé no Deus que pronunciou castigo contra ele, essa mesma fé não lhe foi de qualquer proveito para obtenção da justiça. Abraão foi justificado mediante o crer, porque, ao receber de Deus uma promessa de bondade paternal ele a aceitou como infalível. A fé tem uma relação a um respeito tal pela Palavra de Deus que pode capacitar os homens a descansar e a confiar em Deus.

No tocante à palavra justiça, é preciso observar a fraseologia de Moisés. Ao afirmar que Abraão “creu no Senhor, e isso lhe foi imputado para justiça” (Gn 15:6), ele queria dizer que o justo é aquele indivíduo reputado como tal aos olhos de Deus. Ora, visto que os homens não possuem qualquer justiça em si mesmo, só podem obtê-la por imputação, porque Deus reputa como justiça a fé dos que crêem. Somos, pois informados de que nossa justificação é mediante a fé (Rm 3:21; 5:1), não porque a fé infunde em nós um hábito ou uma qualidade, mas porque somos aceitos por Deus.

Mas, por que à fé recebe tamanha honra, a ponto de ser chamada a causa de nossa justificação: Primeiramente, temos de observar que a fé é apenas uma causa instrumental. Falando de modo restrito, a nossa justiça não é nada mais do que a nossa aceitação graciosa por parte de Deus, a aceitação sobre a qual temos falado, nós a recebemos por meio da fé. Assim, ao atribuirmos à fé a justificação do homem, não estamos tratando da causa principal, mas apenas indicando o caminho pelo qual os homens podem chegar à verdadeira justiça. Portanto, esta justiça não é uma qualidade inerente nos homens, e sim o dom de Deus. Esta justiça só pode ser desfrutada por meio da fé. Tampouco é uma recompensa justa devida à fé, porque recebemos por meio da fé o que Deus nos dá gratuitamente. Todas as expressões semelhantes à que agora citamos têm o mesmo sentido: somos “justificados gratuitamente por sua graça” (Rm 3:24); Cristo é nossa justiça. A misericórdia de Deus é a causa de nossa justiça. A morte e a ressurreição de Cristo obtiveram a justiça por nós. A justiça é outorgada por meio do evangelho. Obtemos a justiça pela instrumentalidade da fé.

Isto revela o ridículo do erro de tentar reconciliar as duas proposições: que somos justificados pela fé, ao mesmo tempo, pelas obras. Pois aquele é justo “pela fé” (Hc 2:14; Hb 10:38) é pobre e destituído de justiça pessoal, descansando tão-somente na graça de Deus. Esta é a razão por que Paulo conclui na Epístola aos Romanos, que Abraão, tendo obtido a justiça pela fé, não tinha qualquer direito de se gloriar diante de Deus (Rm 4:2). Pois não se diz que a fé lhe foi imputada como parte da justiça, mas simplesmente como justiça, de modo que a sua fé era verdadeiramente a sua justiça. Além disso, a fé não olha para qualquer outra coisa, a nãos ser para misericórdia de Deus e para o Cristo morto e ressurreto. Todo o mérito das obras é excluído como causa da justificação, quando a justiça é atribuída à fé. Pois embora a fé se aproprie da imerecida bondade de Deus, de Cristo com todas os seus benefícios, do testemunho de nossa adoção contido no evangelho, ela é universalmente contrastada com a lei, com o mérito das obras e com a dignidade humana. A noção dos sofistas (de que a fé é contrastada somente com as cerimônias) pode ser reprovada imediatamente e sem dificuldades, com base no contexto desta passagem. Portanto, lembremo-nos de que aqueles que são justos mediante a fé são justos fora de si mesmos, ou seja, em Cristo.

Isto também serve como refutação do ardiloso sofisma de pessoas que evitam o raciocínio de Paulo. Moisés, dizem eles, dá à bondade o nome de justiça; assim, a sua intenção era apenas dizer que Abraão foi reputado como um homem bom, em virtude de ter crido em Deus. Hoje, espíritos levianos, levantados por Satanás, esforçam-se para minar, por meio de calúnias indiretas, a infalibilidade da Escritura. Paulo sabia que Moisés não estava ministrando a rapazes lições de gramática, e sim falando sobre a decisão pronunciada por Deus. Paulo entende mui adequadamente o termo justiça em seu sentido teológico. Pois não é no sentido de bondade aprovada entre os homens que somos justos aos olhos de Deus, mas somente onde prestamos obediência perfeita à lei. À Justiça é contrastada com a transgressão da lei, mesmo em seus menores mandamentos. E, visto que não temos nada em nós mesmo. Seus no-la outorga gratuitamente.

Aqui, porém, os judeus objetavam que Paulo torcia as palavras de Moisés para adequá-las ao seu propósito pessoal; porquanto Moisés não estava falando de Cristo ou da vida eterna, mas apenas de uma promessa terrena. Os papistas não diferem muito dos judeus, pois, ainda que não ousem atacar a pessoa de Paulo, destroem totalmente o significado de suas palavras. Respondo que Paulo toma por inquestionável o que constitui um axioma para os crentes: quaisquer promessas que o Senhor fez a Abraão eram complementos da primeira promessa: “Eu sou o teu escudo, e teu galardão será sobremodo grande” (Gn 15:1). Quando Abrão ouviu a promessa: “Multiplicarei a tua descendência como as estrelas do céu e como a areia da praia no mar” (Gn 22:17), ele não limitou a sua visão a essa palavra, mas a incluiu na graça da adoção, como parte de um todo. E, de modo semelhante, todas as outras promessas foram vistas por ele como um testemunho da bondade paternal de Deus, que fortaleceu sua esperança de salvação. Os incrédulos diferem dos filhos de Deus neste aspecto: enquanto também desfrutam dos benefícios divinos, devoram tais benefícios como animais e não olham para o alto. Os filhos de Deus, por outro lado, conscientes e que todos os seus benefícios são santificados pelas promessas, vêem nos benefícios a providência de Deus como Pai deles. A sua atenção é sempre dirigida à esperança de vida eterna, pois começam do fundamento, ou seja, a fé em sua adoção. Abraão foi justificado não meramente porque creu que Deus multiplicaria sua descendência (Gn 22:17), mas porque recebeu a graça de Deus, confiando no Mediador prometido, em quem, como Paulo declara em outra epístola: “Quantas são as promessas de Deus, tantas têm nele o sim; porquanto também por ele é o amém para glória de Deus” (2 Co 1:20).

(( João Calvino ))