SOBRE A SEGUNDA VINDA DE CRISTO - JOÃO CALVINO.

18:35
JOÃO CALVINO
 A SEGUNDA VINDA DE CRISTO

“É justo da parte de Deus retribuir com tribulação aos que lhes causam tribulação, e dar alívio a vocês, que estão sendo atribulados, e a nós também. Isso acontecerá quando o Senhor Jesus for revelado lá nos céus, com os seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes. Ele punirá os que não conhecem a Deus e os que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus. Eles sofrerão a pena de destruição eterna, a separação da presença do Senhor e da majestade do seu poder. Isso acontecerá no dia em que ele vier para ser glorificado em seus santos e admirado em todos os que creram, inclusive vocês que creram em nosso testemunho” (2Ts 1.6-10, NVI).

Nosso Senhor surgirá do céu. Esse é um dos principais artigos da nossa fé. Sua vinda é certa. Portanto, devemos esperar essa vinda enquanto esperamos nossa redenção e salvação. Não devemos duvidar disso. Porque duvidar seria rejeitar tudo aquilo que nosso Senhor Jesus fez e sofreu. Por que Ele veio a este mundo? Por que se vestiu de carne humana? Por que foi exposto à morte? Por que foi levantado da morte e levado ao Céu? A vinda de nosso Senhor selará e ratificará tudo o que Ele fez e sofreu pela nossa salvação. E isso deveria ser suficiente para resistir a todas as tentações deste mundo.

Mas, devido à nossa fragilidade, o Apóstolo Paulo utiliza outro argumento para nos confirmar essa esperança, à qual nos exorta por meio de sua epístola aos tessalonicenses. Deus não permitirá que aqueles que rejeitam o evangelho O desprezem, sem levar em consideração Sua majestade celestial. Ele não está disposto a permitir que Suas criaturas se levantem contra Ele. Por isso deveríamos estar plenamente firmados na esperança da nossa salvação, já que Deus está interessado pessoalmente nela.

Ainda que Deus nos assegure amplamente seu interesse em nossa salvação, nossa natureza está de tal modo cheia de desconfiança que muitas vezes duvidamos. Mas quando somos confrontados com o ensino de que Deus manterá Seu direito e não permitirá que Sua majestade seja pisoteada pelos homens, isso deveria dar-nos segurança. Deus nos concede essa graça de unir Sua glória com a nossa salvação, de modo que existe uma união inseparável entre ambas. Posto que Deus não pode deixar de defender Sua majestade contra o orgulho e a rebelião dos homens, não será infalivelmente certo que nosso Senhor Jesus voltará para dar-nos libertação e repouso? Portanto, percebemos que Jesus Cristo não pode enfatizar a glória de Seu Pai se não declarar-se a Si mesmo como nosso Redentor. Essas coisas não podem ser separadas. Vemos o infinito amor de Deus para com seus fiéis de tal modo que, assim como Ele não pode esquecer Sua própria glória, também não pode esquecer nossa salvação. Se Ele emprega Seu poder para vingar-Se daqueles que resistem a Ele, castigará tanto mais aqueles que têm afligido injustamente os que Lhe pertencem. Isso é o que o Apóstolo Paulo quer dizer quando afirma nessa passagem que Jesus Cristo virá inclusive para vingar-Se daqueles que não têm conhecido a Deus nem obedecido o Seu Evangelho. É como se dissesse: “Aqui estão os seus inimigos e perseguidores. Você ainda duvida que Deus considera suas aflições e tem piedade de você? Pensa que Deus não leva em consideração a Sua própria glória e que não está disposto a defendê-la? Mesmo que os adversários o ataquem porque você segue o Evangelho, Deus, ao defender a Sua própria causa, será o seu Defensor.”

No entanto, Paulo nos dá aqui outras exortações muito úteis. Porque quando fala da vingança preparada contra nossos inimigos, diz: “Jesus Cristo virá, com os seus anjos poderosos, em meio a chamas flamejantes”. E com que propósito? Para confirmar que os inimigos do Evangelho receberão seu castigo diante de Deus. É como se dissesse que jamais poderemos compreender o tormento dos ímpios, assim como também não compreendemos a glória de Deus, porque quando falamos da glória de Deus, sabemos que é infinita. Não podemos medi-la, mas somos surpreendidos por ela. Assim será o horrível castigo preparado para os descrentes, quando Deus liberar Seu poder contra eles. Porque assim como é inestimável a Sua majestade, também a Sua tempestade é incompreensível para nós.

Além disso, quando Paulo fala dos infiéis e dos inimigos de Deus, diz: “os que não conhecem a Deus” e não obedecem ao Evangelho, pois permanecem rebeldes. Esse modo de falar assinala uma doutrina mui útil. Porque se alguém pergunta aos homens se querem fazer guerra contra Deus, mesmo que sejam muito perversos, responderão que não. No entanto, fazem exatamente o contrário do que professam, posto que não estão dispostos a obedecer ao Evangelho. Como é possível? Está escrito que não podemos obedecer a Deus, exceto pela fé. Assim consta na epístola aos Romanos e no livro de Atos dos Apóstolos. Posto que a fé consiste em obediência autêntica, obediência como Deus demanda e aprova, deduzimos que todos os que não querem crer no Evangelho são rebeldes contra Ele. Se eles protestam afirmando não ter a intenção de rebelar-se contra Deus, os fatos falam mais alto do que suas palavras. Assim aprendemos que não podemos servir a Deus se, em primeiro lugar, não crermos no Evangelho, aceitando tudo aquilo que ele contém para nos humilhar. Em resumo, a fé é o principal serviço que Deus espera dos homens. Não obstante, devemos perceber que a fé não é simplesmente um mero assentimento da mente, mas também um profundo assentimento do coração e dos sentimentos. Porque não devemos aceitar somente com a boca e com a imaginação aquilo que o Evangelho nos ensina, mas tal ensino deve ser impresso no coração, para que saibamos que não devemos levantar oposição contra o nosso Deus. Ao contrário, devemos seguir a doutrina oferecida pelo Evangelho com autêntico desejo. A fé, portanto, provém do coração, e não consiste simplesmente em conhecimento. Porque se estivéssemos meramente convencidos de que o Evangelho é uma doutrina razoável, ainda que realmente não nos agradasse, e mesmo nos enojasse, por acaso isso seria obediência? Certamente que não!

Aprendamos, portanto, a fim de obedecer a Deus, a não somente considerar boa e santa a doutrina do Evangelho, mas também a amá-la, a unir a reverência com o amor, tal como Davi diz sobre a Lei, que a considera mais doce do que o mel e mais valiosa do que o ouro e a prata. Devemos ter como preciosa a doutrina do Evangelho, tê-la em grande estima, mais do que todas as coisas que possam parecer-nos doces e dignas de amor. Quando assim procedermos, Deus aprovará nossa obediência. Esse é o serviço peculiar que Ele espera de nós. Do contrário, será em vão que façamos isto ou aquilo; tudo o que fizermos será uma abominação para Deus, enquanto não crermos no Evangelho.

Nisto vemos quão miserável é a condição dos papistas. Eles mesmos se atormentam cada vez mais em suas assim chamadas “devoções”. Creem estar seguros em Deus. Quando vociferam suas ladainhas, quando recitam o Pai Nosso, quando assistem muitas missas e se esforçam em suas peregrinações e romarias, quando oferecem dinheiro para suas abominações, adquirindo com dinheiro os seus ídolos, quando fazem tudo isso, creem que Deus deve conceder-lhes bens equivalentes a seus méritos. E por quê? Porque lhes falta o princípio básico da fé. Porque mesmo que aquelas coisas não fossem más nem contra Deus nem contra os homens, no entanto tornam-se frívolas diante de Deus quando da parte dos homens são oferecidas sem a verdadeira fé. Vemos, então, que ainda que os papistas trabalhem diligentemente para servir a Deus, somente aumentam sua própria condenação, atraindo ainda mais a ira de Deus sobre as suas cabeças. Tanto é assim que nesta passagem da Escritura são chamados de rebeldes contra Deus, posto que não querem sujeitar-se à doutrina do Evangelho. Para se sentirem seguros dizem: “Nossa intenção é servir a Deus, e por isso fazemos isto ou aquilo”. Muito bem. Mas Deus tem demonstrado que o único bem que você tem está na pura graça e misericórdia d’Ele, e que somente em Jesus Cristo devemos buscar a nossa salvação. Ele declara que enviou Seu Filho para que você possa experimentar o resultado de Seu sofrimento, que no nome de Cristo e por meio d’Ele serão recebidas e canceladas todas as suas dívidas, que você não deve procurar nenhum outro advogado a fim de encontrar acesso à Sua majestade, que você deve pedir ser renovado por Seu Espírito Santo. Vocês, papistas, o que estão fazendo? Não há senão orgulho e presunção em vocês. Tal como um touro, atacam todas as promessas de Deus e pretendem obter por seus próprios meios aquilo que Deus somente concede em Cristo. Vocês depositam sua confiança em obras e méritos. Procuram padroeiros e intercessores segundo lhes pareça bem. Deixam Jesus Cristo de lado. Não há verdadeira fé em vocês. E o que é pior, vocês são inimigos de Deus, travam guerra contra Ele, em vez de servir-Lhe e honrar-Lhe, como vocês pensam que fazem.

De modo que certamente devemos glorificar o nosso Deus, pois nos resgatou de semelhantes profundezas e nos demonstrou qual é verdadeiramente o serviço que Lhe agrada, ou seja, Ele nos une ao ensino do Evangelho e às suas promessas. Além disso, se percebemos que os homens são humilhados diante de Deus, sabemos que essa é a autêntica preparação para levá-los ao serviço de Deus, inclusive à obediência plena e perfeita que Deus aprova. Toda incredulidade é rebelião contra Deus, posto que não há obediência verdadeira, a menos que comece pela fé. Paulo diz que aqueles que não obedecem ao Evangelho de modo nenhum conhecem a Deus. Portanto a ignorância não é desculpa para os homens, ainda que confiem nela como um escudo. Parece-lhes suficiente não estarem convencidos de seus próprios pecados. Afirmam que Deus tem obrigação de perdoar-lhes tudo. Será mesmo? O Apóstolo Paulo diz especificamente que Jesus Cristo virá para destruir aqueles que não conhecem a Deus. Devemos entender que estamos perdidos e aturdidos a menos que conheçamos Aquele que nos criou e nos redimiu. Deus nos deu espírito e inteligência para que possamos conhecê-Lo e adorá-Lo, e para que possamos render-Lhe a honra que pertence somente a Ele. Os homens desejam ser honrados e estimados, sem importar-se com seu Criador. Isso é correto, por acaso? Por acaso não é contrário à natureza?

No entanto, percebam que a ignorância dos ímpios não procede de sua simplicidade, mas sim da malícia, orgulho e hipocrisia, que os levam a não ter direção nem sentido na vida. De que modo? Porque se pudéssemos conhecer a Deus, certamente viríamos nos humilhar diante d’Ele. Porque para os homens é impossível pensar no que Deus é realmente, sem serem tocados pelo temor, de modo a inclinar-se perante Ele. Então, quando somos rebeldes contra Ele, isso é sinal de que nunca O conhecemos. Porque o conhecimento de Deus é algo vivo, sendo impossível conhecê-Lo e ser obstinado e rebelde como os ímpios.

Se alegam ignorância, isso é certo. Mas também são malfeitores e hipócritas. Pois não temos, todos, coisas suficientes para nos tornar indesculpáveis? Mesmo que somente existisse a semente que por natureza Deus colocou em nós, de modo que contemplando a terra e o céu deveríamos pensar que existe um Criador do qual tudo procede, não obstante Deus se revela a nós como por um espelho, mostrando a Sua majestade e glória. Até os mais perversos, vendo-se em desgraça, buscam refúgio em Deus, sem refletir sobre isso. Porque Deus os move a isso para deixá-los sem desculpa, de modo que os ímpios não são tão ignorantes a ponto de não haver hipocrisia neles. Eles querem usar a ignorância como desculpa, mas fecham seus olhos conscientemente. Nisso também há orgulho e malícia. Porque se quiséssemos honrar a Deus como Ele deve ser honrado, teríamos uma grande ansiedade para descobrir sobre Ele e sobre a Sua vontade. Então, se os homens são tão covardes e frios, é porque desprezam a Deus. Ou seja, tudo o que querem é ser deixados nas trevas. Como isso é possível? Porque se nos aproximamos de Deus e Ele nos adverte por causa das nossas faltas, deveríamos aprender a nos arrepender de nossos pecados e corrigi-los. Mas nos conformamos em dormir com nossos farrapos imundos. Assim é como os homens evitam os penetrantes olhos de Deus.

Percebam então que não é sem causa que os homens são castigados apesar de sua ignorância. Porque não poderão alegar que foi simples ignorância, mas também hipocrisia, orgulho e malícia. É por isso que o Apóstolo Paulo afirma que aqueles que pecaram sem Lei (isto é, aqueles que não tiveram o conhecimento da Palavra de Deus) também se perderão, e acrescenta que Deus gravou a Sua lei no coração de todos. Ainda que não tenhamos as Escrituras nem a pregação, ainda assim temos a nossa consciência que deveria nos servir como lei, e isso será suficiente para condenar os homens no dia final. Poderemos ter muitos subterfúgios para com os homens e pensarmos que devemos ser eximidos, mas nossa prestação de contas será muito deficiente diante do Juiz celestial. Lá veremos que todas as desculpas serão inúteis. Atentemos para essa passagem que afirma que nosso Senhor virá para executar Sua vingança sobre todos aqueles que não conheceram a Deus nem obedeceram ao Evangelho, isto é, os ímpios. Desse modo vemos que a fé é a única porta para a salvação e para a vida, posto que Jesus Cristo virá para a ruína daqueles que não creram. Além disso devemos notar que, até que Deus não ilumine os homens, estes permanecem cegos e ignorantes. Por quê? Porque podemos conhecer as coisas do céu e da terra, mas até que conheçamos a Deus, que importância isso tem? E não iremos conhecê-Lo até que Ele nos ilumine por meio do Espírito Santo. Vemos então que não seremos justificados pela nossa ignorância, de modo que ninguém engane a si mesmo. Por outro lado, saibamos também que quando tenhamos conhecido verdadeiramente a Deus, é razoável que nos sujeitemos a Ele, e que Ele nos governe, e que Sua vontade guie nossos pensamentos e sentimentos, e que nossa fé no Evangelho seja tal que possamos confessar, como Davi, que essa doutrina nos é mais doce do que o mel e mais preciosa do que o ouro e a prata.

Além disso, aqui vemos que Deus deseja nos dar segurança quanto à nossa salvação. Porque se Jesus Cristo virá para vingar-Se de todos aqueles que não creram no Evangelho, podemos e devemos deduzir que o mundo será julgado unicamente segundo o Evangelho. Nosso texto nos diz que quando em autêntica fé tenhamos recebido as promessas de Deus, não devemos duvidar de Sua bondade nem de Seu amor por nós, nem duvidar de que Jesus Cristo fará aquilo que tem oferecido para nossa redenção. Então todos aqueles que creem no Evangelho podem confiar plenamente na verdade de que Jesus Cristo virá como nosso Redentor. Deus nos dá essa certeza.

Quanto ao que o Apóstolo diz aqui sobre o poder e a glória de Jesus Cristo, é para indicar que a Sua vinda será terrível para os descrentes e rebeldes. Por acaso é pouca coisa dizer que Jesus Cristo virá acompanhado por anjos, em chamas flamejantes, que virá com uma majestade incompreensível, descendo com relâmpagos sobre todos os Seus inimigos? De modo que vimos que Paulo quis admoestar os descrentes, como se houvesse algum remédio para eles, a fim de que deixem de ser incorrigíveis. No entanto, quando vemos que todos os que são atraídos por Satanás e endurecidos pelo pecado nada fazem senão zombar de todas as advertências de Deus, tiramos daí uma lição. Quando ouvimos que Jesus Cristo voltará de modo tão terrível, permaneçamos de tal modo em temor e em domínio próprio, que quando Satanás venha nos atacar ou tentar nos seduzir para que deixemos de obedecer ao Evangelho, possamos dizer a nós mesmos: “Aonde estamos indo? À perdição! Por acaso estamos desafiando Aquele que possui toda a majestade, domínio e glória para lançar no abismo todos os que se Lhe opõem?”. Se pensássemos sempre assim, certamente seríamos contidos de tal modo que todos os desejos de nossa carne e todas as tentações do mundo nada poderiam fazer contra nós.

No entanto, o Apóstolo Paulo também quis comparar a primeira vinda do Senhor Jesus com a segunda. Por que os perversos e os que desprezam o Evangelho se levantam de maneira tão ousada, enfurecidos e descontrolados? É porque ouvem que Cristo, estando neste mundo, assumiu a forma de servo, despojando-Se a Si mesmo, como diz Paulo, a ponto de chegar àquela morte de cruz, tão vergonhosa e cheia de desgraça. Mesmo que os inimigos de Deus não conheçam Jesus Cristo senão somente nessa debilidade, eles a utilizam como oportunidade para blasfemar contra Ele com fúria pertinaz. Eles não consideram que assim como Ele sofreu segundo a debilidade da carne, assim também foi exaltado segundo o poder do Espírito. Revelou-se então numa glória sob a qual todos nós, grandes e pequenos, deveríamos estremecer. Mas, novamente, tolos descrentes que não conhecem o poder da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, ouçam o que o Apóstolo diz aqui, ou seja, que Ele não virá para ser desprezado!

No passado Ele veio para ser obediente em nosso lugar, conforme era necessário para pagar pelos nossos pecados. Mas agora virá como Juiz! Ele foi julgado e condenado para nos livrar do trono do juízo de Deus, e para que pudéssemos ser absolvidos de todos os nossos pecados. Mas Ele não voltará em semelhante condição humilde. Ele virá com os anjos da Sua glória! Isso é o que o Apóstolo Paulo quis dizer afirmando que a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo será terrível.

Além disso, notemos que ele acrescenta: virá “para ser glorificado em seus santos e admirado em todos os que creram”. Não é sem motivo que Paulo acrescenta essa afirmação, pois quem somos nós para resistir à presença do Filho de Deus quando vier em chamas flamejantes e no esplendor da Sua glória?! Quando Ele vier com poder além do entendimento humano, ai! Não nos derreteremos em Sua presença, como a neve se derrete ao sol? Por acaso não seremos reduzidos a nada? A mera menção da divina glória de Jesus Cristo deveria ser suficiente para mergulharmos nas profundezas. Mas o Apóstolo nos diz que, se somos do número dos fiéis, e se hoje cremos no Evangelho, não deveremos temer quando Jesus Cristo apareça, nem entrar em pânico diante da majestade que então resplandecerá n’Ele. Como isso é possível?

Porque Ele virá (diz o Apóstolo) “para ser glorificado em seus santos e admirado em todos os que creram”. É como se dissesse que aquilo que mencionou acima, sobre chamas flamejantes, o que disse sobre punição e temor, não foi para desanimar os crentes. Pois Ele virá para a redenção dos que creem. O ensino de que nosso Senhor unirá essas duas coisas é encontrado em toda a Escritura. Ele virá para vingar-Se de Seus inimigos, e Ele virá para libertar os que creem. Virá para ser Salvador daqueles que Lhe têm honrado e servido, e virá para derrubar e arruinar aqueles que se endureceram contra Ele e contra a Sua Palavra. Então devemos ter em mente que essa terrível descrição aqui apresentada não tem o objetivo de nos atemorizar, mas sim de nos alegrar por tamanho amor e graça de Deus sobre nós. Certamente nosso Senhor virá com terrível poder. Mas será terrível para os inimigos do Evangelho: “É justo da parte de Deus retribuir com tribulação aos que lhes causam tribulação, e dar alívio a vocês, que estão sendo atribulados, e a nós também”. Ele lançará todos os Seus inimigos no abismo, e vingará as feridas, insultos e aflições que suportamos.

Será que somos dignos de que o Filho de Deus resplandeça desse modo Sua majestade? Certamente não o somos, mas Ele deseja fazê-lo porque nos ama. Devemos ser consolados quando o Apóstolo fala da vinda do Senhor com semelhante terror e com uma majestade tão terrível. Porque assim declara eficazmente o infinito amor que Ele tem e demonstra por nós, posto que coloca Seu poder e majestade para vingar todas as tribulações que temos suportado. Mas não poderíamos nos alegrar nisso antes de observar o que o Apóstolo Paulo diz aqui, isto é, que nosso Senhor Jesus Cristo não somente virá para vingar-Se de Seus inimigos e daqueles que se revoltam contra o Evangelho, mas também para ser glorificado e admirado em Seus santos e naqueles que têm crido. Quando Paulo acrescenta isso é como se estivesse dizendo: “Ele virá para nos tornar participantes da Sua glória”. Em suma, Paulo diz que nosso Senhor não virá para guardar Sua glória somente para Si mesmo, mas para derramá-la sobre todos os que creem. Por isso diz aos colossenses: “Quando Cristo, que é a sua vida, for manifestado, então vocês também serão manifestados com ele em glória” (Cl 3.4). Então, Ele não virá para obter algo somente para Si mesmo, do qual seremos privados, mas sim para que a Sua glória nos seja comunicada, não para reduzir ou eclipsar a Sua própria, mas para nos transformar, como Paulo ensina aos filipenses: “Pelo poder que o capacita a colocar todas as coisas debaixo do seu domínio, ele transformará os nossos corpos humilhados, tornando-os semelhantes ao seu corpo glorioso” (Fp 3.21). Em vez da fraqueza e debilidade que nos caracteriza agora, seremos adaptados à vida celestial de nosso Senhor Jesus Cristo.

De modo que Paulo, ao falar desse modo, prestou atenção especial à condição dos crentes, nesta vida. Porque somos homens marcados; apontam-nos o dedo, fazem gracejos a nosso respeito, vemos que os malfeitores zombam dos filhos de Deus. Somos desprezíveis neste mundo, como um lembrete de que não devemos buscar a nossa própria glória. Certamente Deus poderia fazer com que fôssemos tidos em alta estima por todos, se Ele quisesse. Mas Ele prefere que suportemos essas infâmias para que levantemos nossos olhos e busquemos nosso triunfo lá no alto. Além disso, seria adequado que fôssemos aplaudidos e glorificados neste mundo, enquanto o próprio Deus é desonrado? Os perversos zombam abertamente de Deus, e se lhes fosse possível, até mesmo cuspiriam na própria face do Criador! Se quiséssemos ser honrados por eles, não deveríamos ser chamados de covardes? Portanto, mesmo que agora os fiéis sejam desprezados, oprimidos, despojados de seus bens e de suas casas, pisoteados e maltratados, o Apóstolo nos lembra que no dia final seremos admirados juntamente com o Filho de Deus. Aqui Paulo mostra especialmente quem deve ter a esperança de compartilhar a glória de Deus, ao descrever o caráter daqueles que creem, chamando-os de “santos”. Porque demonstra que 1) os que se entregam à corrupção deste mundo não devem esperar receber parte alguma dessa porção ou herança, nem esperar ter nada em comum com o Filho de Deus. No entanto, ao acrescentar “em todos os que creram”, mostra que 2) a fé é a genuína fonte e origem da santidade. E, em terceiro lugar, mostra 3) que se temos uma fé pura e reta seremos mais e mais santificados. Devemos enfatizar essas três verdades.

A primeira nos adverte que se vamos nos contaminar e chafurdar em nossa poluição e imundície, não devemos esperar que a vinda do Filho de Deus seja proveitosa para nós, como diz o Profeta: “Ai de vocês que anseiam pelo dia do Senhor! O que pensam vocês do dia do Senhor? Será dia de trevas, não de luz. O dia do Senhor será de trevas e não de luz. Uma escuridão total, sem um raio de claridade” (Am 5.18,20). Posto que naquele tempo havia muitos que justificavam seus pecados apelando para o nome do Senhor, o Profeta os advertiu que isso lhes custaria muito caro. Da mesma forma, vemos que atualmente as pessoas mais perversas professam ter fé. Mas são pessoas corrompidas e cheias de impiedade que têm tanta religião quanto os cães e os porcos. Finalmente, quando são examinados em suas vidas, percebe-se que estão cheios de impiedade, não são mais leais do que as raposas, estão cheios de crueldade e amargura contra seus semelhantes; são cheios de toda indecência e ultraje; todo aquele que lhes ofereça mais ganhará seus votos; abrem um negócio para fraudar e enganar; de modo que vendem não somente a sua fé, mas também a sua honra aos homens; entregam-se a toda espécie de mal. Em resumo, são abertamente vis, ainda que jamais deixem de orgulhar-se de pertencer à igreja de Deus; afirmando que Deus os ajudará. Creem que na vinda do Senhor obterão algum lucro? De jeito nenhum! Ao contrário, será para os tais um dia de assombro, terrível e aterrador. Neste texto do Apóstolo Paulo aprendemos que se queremos que a vinda do nosso Senhor Jesus nos seja benéfica, e que Ele apareça como nosso Redentor para a nossa salvação, devemos dedicar-nos à santidade e nos separar das contaminações deste mundo e da carne.

Mas para triunfar nisto devemos perceber que devemos começar pela fé. Com efeito, a fé é a fonte de toda santidade, como está escrito em Atos 15, onde o Apóstolo Pedro afirma que pela fé Deus purifica o coração dos homens [cf. At 15.9]. Isso é dito para esclarecer que, ainda que aparentem beleza interior, os corações humanos sempre estão contaminados e enfermos diante de Deus, até que Ele os purifique por meio da fé.

Portanto, se temos uma fé autêntica, seremos mais e mais santificados. Isto é, somos renovados unicamente para o serviço a Deus, e somos dedicados unicamente para honrar a Deus. Assim que pela fé agradamos a Jesus Cristo, Ele vem habitar em nós, assim como diz a Escritura. O Apóstolo Paulo diz que pela fé Cristo habita nos corações dos crentes. E eu pergunto: por acaso não seria incompatível Cristo habitar em nós, enquanto ainda permanecemos em vilezas e coisas imundas? Por acaso alguém pensa que Ele quer viver num chiqueiro? Então é preciso que nos consagremos a Ele.

Além disso Ele não pode estar conosco a não ser pelo Espírito Santo. E não é por acaso o Espírito de santidade, justiça e retidão? Então, não seria uma mistura estranha se os homens professassem fé em Jesus ao mesmo tempo em que vivessem de modo dissoluto e perverso, contaminados por todas as corrupções do mundo? Seria a mesma coisa que dizer: “Aceito o sol, mas não seu brilho”. Ora, é mais fácil que o sol venha sem seu brilho do que Jesus Cristo sem a Sua justiça. Portanto, não tomemos esse manto de hipocrisia dizendo que temos fé no Evangelho, a menos que nossa vida corresponda à fé que professamos, demonstrando que de fato recebemos Jesus Cristo, e que pela graça do Espírito Santo nos dedica e santifica para obedecer a Deus Pai.

De modo que não devemos nos apoiar em falsidades para usurpar essa afirmação de fé, posto que é algo tão sagrado. Cuidemos então de não profaná-la. Mas se cremos no Filho de Deus, mostremos pelo resultado em nossas vidas que de fato cremos n’Ele. Também é certo que Ele nos fará experimentar o Seu poder. Nos dará graça para esperar com paciência a Sua vinda. Ainda que neste mundo venhamos a sofrer muito pelo Seu nome, no final seremos revestidos com Sua glória e Sua retidão. Ele nos deu Sua promessa, bem como a força que Ele nos fará sentir sempre para que não duvidemos.

Prostremos-nos em humilde reverência diante do nosso Deus!

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Fonte: Biblioteca de la Iglesia Reformada.
http://www.iglesiareformada.com/Calvino_Advenimiento.html