A Bíblia e o Espírito Santo não se
dissociam
Quando, porém, nos movem acusação, de que nos
apegamos demasiadamente à letra que mata, nisto incorrem na pena de desprezarem
a Escritura. Ora, salta à vista que Paulo está ali [2Co 3.6] a contender com os
falsos apóstolos, os quais, na realidade, insistindo na lei à parte de Cristo,
alienavam o povo da graça da nova aliança, na qual o Senhor promete que haverá
de gravar sua lei nas entranhas dos fiéis lhas imprimir no coração [Jr 31.33].
Portanto, morta é a letra, e a lei do Senhor mata a seus leitores, quando não
só se divorcia da graça de Cristo, mas ainda, não tangido o coração, apenas soa
aos ouvidos. Se ela, porém, mediante o Espírito, é eficazmente impressa nos
corações, se a Cristo manifesta, ela é a palavra da vida [Fp 2.16], a converter
as almas, a dar sabedoria aos símplices etc. [Sl 19.7].
Ademais, ainda nessa mesma passagem [2Co 3.8], o
Apóstolo chama sua pregação de ministério do Espírito, sem dúvida significando
que o Espírito Santo de tal modo se junge a sua verdade que expressou nas
Escrituras, que manifesta e patenteia seu poder, onde então, afinal, se rende à
Palavra a devida reverência e dignidade. Tampouco isto contradiz o que foi dito
pouco atrás: que a própria Palavra não nos é absolutamente certa, a não ser que
seja confirmada pelo testemunho do Espírito. Pois o Senhor ligou entre si, como
que por mútuo nexo, a certeza de sua Palavra e a certeza de seu espírito, de
sorte que a sólida religião da palavra se implante em nossa alma quando brilha
o Espírito, que nos faz aí contemplar a face de Deus, assim como,
reciprocamente, abraçamos ao Espírito, sem nenhum temor de engano, quando o
reconhecemos em sua imagem, isto é, na Palavra.
De fato assim sucede.
Deus não deu a conhecer aos homens a Palavra com
vistas a apresentar momentânea para que logo em seguida a abolisse com a vinda
de seu Espírito; pelo contrário, enviou o mesmo Espírito, pelo poder de quem
havia ministrada a palavra, para que realizasse sua obra mediante a confirmação
eficaz dessa mesma Palavra. Dessa forma, Cristo abriu o entendimento aos dois
discípulos de Emaús [Lc 24.27,45], não para que, postas de parte as Escrituras,
se fizessem sábios por si mesmos, mas para que entendessem essas Escrituras. De
modo semelhante Paulo, enquanto exorta aos tessalonicenses a que não extingam o
Espírito, não os arrebata às alturas a vãs especulações à parte da Palavra, mas
imediatamente acrescenta que as profecias não deveriam ser desprezadas [1Ts
5.19,20]. Como o quê acena, não dubiamente, que a luz do Espírito é sufocada
assim que as profecias são tratadas com desprezo.
O que esses inflados [enthousiastaí – entusiastas;
fanáticos] dirão acerca desta coisas, os quais reputam esta como sendo apenas a
sublime iluminação, quando, abrindo mão despreocupadamente e dizem adeus à
divina Palavra, não menos confiantes que temerários, agarram sôfregos qualquer
coisa que hajam concebido enquanto dormitam? Certamente que aos filhos de Deus
lhes fica bem a sobriedade, os quais, ao mesmo tempo que, sem o Espírito de
Deus, se vêem privados de toda a luz da verdade, todavia não ignoram que a
Palavra é o instrumento pelo qual o Senhor dispensa aos fiéis a iluminação de
seu Espírito. Pois não conhecem outro Espírito além daquele que habitou e falou
nos apóstolos, de cujos oráculos são continuamente convocados a ouvir a
Palavra.
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Autor: João Calvino
As Institutas da Religião Cristã - Livro I, Capítulo 9, edição clássica, ed. Cultura Cristã, Vol 1, pg
93-96.
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