Sermos livrados da sentença da condenação da Lei Divina é a benção fundamental da salvação de Deus: enquanto continuamos sob a maldição, não podemos ser nem santos nem felizes. Porém, em relação à natureza desta libertação, em que exatamente consiste, sobre que fundamento é obtida, e por quais meios é assegurada, existe na atualidade muita confusão. A maioria dos erros que se tem generalizado sobre este tema surgiram da falta de uma clara observação do assunto em si mesmo, e até que entendamos verdadeiramente o que a justificação é, não estamos em posição nem de afirmar nem de negar algo com respeito a ela. Pó isso, estimamos necessário dedicar um capítulo inteiro a uma cuidadosa definição e explicação desta palavra “justificação”, esforçando-nos em mostrar o que ela significa, e o que ela não significa.
Entre os protestantes e os romanistas há uma ampla diferença de opinião acerca do significado do termo “justificar”: eles afirmam que justificar é fazer intrinsecamente justo e santo, nós insistimos que justificar significa somente pronunciar formalmente ou declarar legalmente justo. O papismo inclui com a justificação, a renovação da natureza moral do homem ou a libertação da corrupção, assim confundem a justificação com a regeneração e a santificação. Contrariamente, todos os protestantes representativos têm mostrado que a justificação não se refere a uma mudança do tipo moral, porém a uma mudança de estado legal; ainda que reconhecendo, certamente, declarando com firmeza, que uma mudança radical de caráter invariavelmente acompanha a justificação. É uma mudança legal desde um estado de culpabilidade e condenação a um estado de perdão e aceitação; e esta mudança é devido exclusivamente a um ato gracioso de Deus, baseada sobre a justiça de Cristo sendo imputado a Seu povo (não tendo eles nenhuma própria).
“Nós explicamos a justificação simplesmente como uma aceitação pela qual Deus nos recebe em Seu favor e nos estima como pessoas justas; e dizemos que ela consiste na remissão dos pecados e na imputação da justiça de Cristo....A justificação, portanto, não é outra coisa que uma absolvição de culpabilidade daquele que foi acusado, como se sua inocência houvesse sido provada. Já que Deus, portanto, nos justifica pela mediação de Cristo, Ele nos desculpa, não por um reconhecimento de nossa inocência pessoal, mas por uma imputação de justiça; de maneira que, ainda que somos injustos em nós mesmos, somos considerados como justos em Cristo” (João Calvino, 1559)”.
“O que é justificação? Resposta: Justificação é um ato da livre graça de Deus para com os pecadores, no qual Ele os perdoa, aceita e considera justas as suas pessoas diante dEle, não por qualquer coisa neles operada, nem por eles feita, mas unicamente pela perfeita obediência e plena satisfação de Cristo, a eles imputada por Deus e recebidas só pela fé” (Catecismo de Westminster, 1643).
“Assim definimos a justificação de um pecador conforme ao Evangelho: É um judicial, porém gracioso ato de Deus, pelo qual o pecador escolhido e crente é absolvido da culpa de seus pecados, e adquire um direto à vida eterna concedida a ele, por causa da obediência de Cristo, recebida pela fé” (H. Witsius, 1693).
“Se diz que uma pessoa é justificada quando ela é considerada por Deus como livre da culpa do pecado e seu merecido castigo; e como tendo aquela justiça pertencendo-lhe, isso lhe dá o direito à recompensa da vida” (Jonathan Edwards, 1750).
A justificação, então, não se refere a alguma mudança subjetiva produzida na atitude de uma pessoa, porém é exclusivamente uma mudança objetiva em sua posição em relação à lei. Que a justificação é impossível que possa significar fazer a uma pessoa justa ou boa intrinsecamente é mais claramente visto a partir do uso do termo em si na Escritura. Por exemplo, em Provérbios 17:15 lemos: “O que justifica o ímpio, e o que condena o justo, tanto um como o outro são abomináveis ao SENHOR”. Agora bem, obviamente quem muda a um “ímpio” fazendo-o uma pessoa justa está longe de ser uma “abominação ao Senhor”, porém o que o sabendo disso, diz que uma pessoa ímpia é justa, é aborrecível a Ele.
Também em Lucas 7:29 lemos: “E todo o povo que o ouviu e os publicanos, tendo sido batizados com o batismo de João, justificaram a Deus”. Quão impossível é fazer que as palavras “justificaram a Deus” signifique alguma transformação moral de Seu caráter; porém aquelas palavras devem ser entendidas como que eles declararam que Ele é justo, e toda ambigüidade é tirada. Uma vez mais, em 1 Timóteo 3:16 nos é dito que o Filho encarnado foi “justificado no (ou “pelo”) Espírito”, isto é, Ele foi publicamente reivindicado em Sua ressurreição, declarado inocente ante as denuncias blasfemas com que os judeus Lhe acusaram.
A justificação trata somente do aspecto legal da salvação. É um termo judicial, uma palavra dos tribunais de justiça. É a sentença de um juiz sobe uma pessoa que tem sido trazida diante dele para ser julgada. É aquele ato da graça de Deus como Juiz, na elevada corte do Céu, pelo qual Ele dita que um pecador escolhido e crente é libertado da penalidade da lei, e totalmente restaurado ao favor divino. É a declaração de Deus de que a parte acusada está totalmente de acordo com a lei; a justiça o desculpa porque a justiça tem sido satisfeita. Assim, a justificação é aquela mudança de estado pela qual um, que sendo culpável diante de Deus e portanto sob a sentença condenatória da Sua Lei, e merecedor de nada exceto de um eterno apartamento de Sua presença, é recebido em Seu favor e se lhe dá um direito a todas as bênçãos que Cristo adquiriu para Seu povo, por Sua perfeita satisfação.
Na demonstração da definição dada, o significado do termo “justificar” pode ser determinado, primeiro, pelo seu uso nas Escrituras. “Então disse Judá: Que diremos a meu senhor? Que falaremos? E como nos justificaremos?” (esta palavra hebraica “tsadag” sempre significa “justificar”) (Gênesis 44:16). Aqui temos um assunto que era inteiramente judicial. Judá e seus irmãos foram levados para comparecer diante do governador do Egito, e estavam preocupados sobre como poderiam obter uma sentença em seu favor. “Quando houver contenda entre alguns, e vierem a juízo, para que os julguem, ao justo justificarão, e ao injusto condenarão”(Deuteronômio 25:1). Aqui novamente vemos claramente que o termo é de tipo legal, usado em conexão com os procedimentos dos tribunais legais, implicando um processo de investigação e juízo. Deus pôs aqui uma regra para reger aos juízes de Israel: eles não deviam “justificar” ou ditar uma sentença em favor do culpado: comparar 1 Reis 8:31,32.
“Se eu me justificar, a minha boca me condenará; se for perfeito, então ela me declarará perverso” (Jó 9:20): a primeira parte desta frase é explicada na segunda - “justificar” ali não pode significar fazer santo, porém pronunciar uma sentença em meu próprio favor. “E acendeu-se a ira de Eliú, filho de Baraquel, o buzita, da família de Rão; contra Jó se acendeu a sua ira, porque se justificava a si mesmo, mais do que a Deus” (Jó 32:2), o que obviamente significa, porquanto ele se declarava sem culpa a si mesmo mais que a Deus. “Para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares” (Salmos 51:4), o que significa que Deus atuando em Sua função judicial poderia ser declarado justo em ditar sentença. “Mas a sabedoria é justificada por seus filhos” (Mateus 11:19), o que significa que os que são realmente regenerados por Deus tem considerado a sabedoria de Deus (que os escribas e fariseus consideravam necessidade) ser, como realmente é, perfeita sabedoria: eles lhe tiraram a calúnia de ser loucura.
2. A força precisa do termo “justificar” pode ser averiguada notando que este é a antítese de “condenar”. Agora bem, condenar não é um processo pelo qual um bom homem é feito mal, mas é a sentença de um juiz sobre alguém porque ele é um transgressor da lei. “O que justifica o ímpio, e o que condena o justo, tanto um como o outro são abomináveis ao SENHOR” (Provérbios 17:15 e ver também Deuteronômio 25:1). “Porque por tuas palavras serás justificado, e por tuas palavras serás condenado” (Mateus 12:37). “É Deus quem os justifica. Quem é que condena?” (Romanos 8:33,34).
Ora, é inegável que a “condenação” é a declaração de uma sentença contra uma pessoa pela qual a pena prescrita pela lei lhe é atribuída e é ordenada para ser aplicada sobre ela; por conseguinte, a justificação é a declaração de uma sentença em favor de uma pessoa, pela qual a recompensa prescrita pela lei é ordenada para ser-lhe outorgada.
3. Que a justificação não é uma mudança experimental desde a pecaminosidade à santidade, mas uma mudança judicial desde a culpabilidade à não condenação pode ser evidenciado pelos termos equivalentes utilizados. Por exemplo, em Romanos 4:6 lemos: “Assim também Davi declara bem-aventurado o homem a quem Deus imputa a justiça sem as obras”: assim que a justiça legal não é uma conduta implantada no coração, mas um dom cedido a nossa conta. Em Romanos 5:9,10 ser “justificados pelo seu sangue” é o mesmo que ser “reconciliados com Deus pela morte de seu Filho”, e a reconciliação não é uma transformação de caráter, mas o obter a paz pela remoção de tudo o que causa ofensa.
4. A partir do fato de que o aspecto judicial de nossa salvação é proposto nas Escrituras sob as figuras de um juízo em um tribunal de justiça e uma sentença. “(1) Se supõe um juízo, sobre o qual o salmista implora que este não se desenvolva de acordo com a lei: Salmo 143:2. (2) O Juiz é o próprio Deus: Isaías 50:7,8. (3) O tribunal onde Deus está sentado para o juízo é o trono da graça: Hebreus 4:16. (4) Uma pessoa culpada. Ela é o pecador, que é tão culpado de pecado como para ser abominável ante o juízo de Deus: Romanos 3:18. (5) Os acusadores estão prontos para propor e promover as acusações contra a pessoa culpada; estes são a lei (João 5:45), a consciência (Romanos 2:15), e Satanás (Zacarias 3:2 e Apocalipse 12:10). (6) A acusação é admitida e redatada em uma “ata” em forma de lei, e é posta diante do tribunal do Juiz, no foro, para a libertação do criminoso: Colossenses 2:14. (7) Se prepara uma defesa no Evangelho em favor da pessoa culpada: esta é a graça, através do sangue de Cristo, o resgate pago, a eterna justiça trazida pelo Fiador do pacto: Romanos 3:23,25; Daniel 9:24. (8) A Ele somente açude o pecador, renunciando a toda outra desculpa ou defesa qualquer que sejam: Salmos 130:2,3; Lucas 18:13. (9) Para fazer eficaz esta súplica temos um advogado com o Pai, e Ele apresenta Sua própria propiciação por nós: 1 João 2:1,2. (10) A sentença acerca disto é a absolvição, por causa do sacrifício e da justiça de Cristo; com a aceitação no favor, como pessoas aprovadas por Deus: Romanos 8:33,34; 2 Coríntios 5:21” (John Owen).
Na base do que temos visto, podemos perceber o que a justificação não é. Primeiro , ela é distinta da regeneração: “aos que chamou a estes também justificou” (Romanos 8:30). Ainda que juntos inseparavelmente, o chamamento eficaz ou o novo nascimento e a justificação são bastante distintos. Um nunca está separado do outro, ainda que eles devam ser confundidos. Na ordem natural, a regeneração precede à justificação, ainda que não é de nenhuma maneira a causa ou o fundamento dela: ninguém é justificado até que creia, e ninguém crê até que seja convencido. A regeneração é o ato do Pai (Tiago 1:18), a justificação é a sentença do Juiz. Uma me dá um lugar na família de Deus, a outra me assegura uma posição diante de Seu trono. Uma é interior, sendo a concessão da vida divina à minha alma: a outra é exterior, sendo a imputação da obediência de Cristo à minha conta. Por uma eu sou levado de regresso arrependido à casa do Pai, por outra se me dá uma “melhor vestidura” que me prepara para Sua presença. Segundo, ela difere da santificação. A santificação é moral ou experimental, a justificação é legal ou judicial. A santificação resulta da operação do Espírito em mim, a justificação é baseada no que Cristo fez por mim. Uma é gradual e progressiva nesta vida; a outra é completa e não admite adição. Uma tem que ver com meu estado, a outra tem que ver com minha posição diante de Deus. A santificação produz uma transformação de caráter; a justificação é uma mudança de status legal: é uma mudança desde a culpa e condenação ao perdão e aceitação, e isto somente por um ato de graça por parte de Deus, fundamentado sobre a imputação da justiça de Cristo, por meio do instrumento da fé somente. Ainda que a justificação está totalmente diferenciada da santificação contudo, a santificação sempre a acompanha.
Terceiro, ela difere do perdão. Em algumas coisas concordam. Somente Deus pode perdoar pecados (Marcos 2:7) e somente Ele pode justificar (Romanos 3:30). Sua livre graça é a única causa impulsora em um (Efésios 1:17) e da outra (Romanos 3:24). O sangue de Cristo é a causa que adquire ambos por igual: Mateus 26:28, Romanos 5:9. Os objetos sãos os mesmos: as pessoas que são perdoadas são justificadas, e as mesmas que são justificadas são perdoadas; aos que Deus imputa a justiça de Cristo para sua justificação, Ele lhes dá a remissão de pecados; e aos que Ele não culpa de pecado, senão que lhes perdoa, a eles lhes atribui justiça sem obras (Romanos 4:6-8). Ambos são recebidos pela fé (Atos 26:18, Romanos 5:1). Porém ainda que concordem nestas coisas, em outras se diferenciam.
De Deus se diz ser “justificado” (Romanos 3:4), porém seria blasfêmia falar dEle como sendo “perdoado” - isto mostra imediatamente que as duas coisas são diferentes. Um criminoso poderia ser perdoado, porém somente uma pessoa justa pode ser realmente justificada. O perdão trata somente com os atos de um homem, a justificação com o homem em si. O perdão considera aos pedidos de clemência, a justificação aos de justiça. O perdão somente livra da maldição causada pelo pecado; a justificação além disso, outorga um direito ao céu. A justificação se aplica ao crente com respeito às demandas da lei, o perdão com respeito ao Autor da lei. A lei não perdoa, já que ela não admite afrouxamento; porém que Deus perdoa as transgressões da lei em Seu povo provendo uma satisfação à lei, adequada a suas transgressões. O sangue de Cristo foi suficiente para proporcionar o perdão (Efésios 1:7), porém Sua justiça é necessária para a justificação (Romanos 5:19). O perdão liberta da morte (2 Samuel 12:13), porém a justiça imputada é chamada “justificação de vida” (Romanos 5:18). Uma vê ao crente como completamente pecador, a outra como completamente justo. O perdão é a remissão do castigo, a justificação é a declaração de que não existe fundamente para impor castigo. O perdão pode ser repetido até setenta vezes sete, a justificação é de uma vez para sempre.
Do que se disse no último parágrafo, podemos ver que é um sério erro limitar a justificação ao mero perdão de pecados. Assim como a “condenação” não é a execução do castigo, porém mais bem a declaração formal de que o acusado é culpado e digno de castigo; assim a “justificação” não é meramente a remissão do castigo, mas o anúncio judicial de que o castigo não pode ser aplicado com justiça - sendo o acusado plenamente conformado a todos os requerimentos positivos da lei como resultado da perfeita obediência de Cristo, que tem sido legalmente posta em sua conta. A justificação de um crente não é outra coisa que sua admissão à participação na recompensa merecida por seu Fiador. A justificação é nada mais nada menos que a justiça de Cristo sendo imputada a nós: a benção negativa que dalí emana é a não inculpação de pecados; a positiva, um direito à herança celestial.
Belamente tem isto sido assinalado que “Não podemos separar do Emanuel Sua própria essencial excelência. Podemos vê-LO ferido e oferecido como incenso batido para o fogo, porém foi alguma vez o incenso queimando sem fragância, e sendo somente a fragância o resultado? O nome de Cristo não somente anula o pecado, este provê no lugar daquele que foi anulado, sua própria excelência eterna. Não podemos somente ter seu poder nulificante; o outro é o seguro acompanhante. Assim era com cada sacrifício típico da Lei. Este era batido: porém como sendo sem defeito era queimado sobre o altar para um odor fragante. O odor ascendia como um memorial diante de Deus: este era aceito por Ele, e seu valor era atribuído ou imputado a quem havia trazido a vítima substituída. Se portanto, recusamos a imputação de justiça, recusamos o sacrifício como é revelado nas Escrituras; já que as Escrituras não conhecem de sacrifício cuja eficácia seja tão esgotada na eliminação da culpa como para não deixar nada que possa ser apresentado em aceitabilidade diante de Deus” (B. W. Newton).
“O que é colocar nossa justiça na obediência de Cristo, senão que sustentar que somos considerados justos somente porque Sua obediência é aceita por nós como se fosse nossa própria ? Pela qual Ambrósio me parece que exemplificou mui belamente esta justiça na benção de Jacó: assim como ele, que não tinha por sua própria conta direito aos privilégios da primogenitura, estando dissimulado com os costumes de seu irmão, e vestido com suas roupas, que espalharam um perfume mui excelente, o levaram a obter o favor de seu pai, de forma que pôde receber a benção para seu próprio proveito, sob o caráter de outro; desse modo nos resguardemos debaixo da preciosa pureza de Cristo” (João Calvino).
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FONTE: Monergismo.com
CAPÍTULO 1 do livro-ebook, "A Doutrina da Justificação" - Arthur W. Pink
TRADUÇÃO: Felipe Sabino de Araújo Neto
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