As Três Horas de Trevas – C. H. Spurgeon

C. H. Spurgeon
Sermão pregado no Domingo de 18 de Abril de 1886.  Por Charles Haddon Spurgeon. 
No Tabernáculo Metropolitano, Newington, Londres

“E desde a hora sexta houve trevas sobre toda a terra, até à hora nona. ” (Mateus 27:45).

   Desde as nove da manhã até ao meio-dia, a luz do Sol iluminou com toda sua intensidade usual; de tal forma que os adversários de nosso Senhor tiveram tempo suficiente para contemplar e insultar Seus sofrimentos. Não poderia haver nenhum equivoco a respeito do fato de que Ele estava realmente cravado na cruz. Pois, Ele foi crucificado em plena luz do dia. Estamos plenamente convencidos que foi Jesus de Nazaré, já que tanto seus amigos como seus inimigos foram testemunhas oculares de Sua agonia: durante três longas horas os judeus estiveram sentados ali o contemplando na cruz, zombando de Suas misérias.

   Dou graças por essas três horas de luz. Do contrário, os inimigos de nossa fé teriam questionado se verdadeiramente o corpo bendito de nosso Senhor foi cravado na cruz, e haveriam dado motivo a inumeráveis fantasias, tão abundantes como os morcegos e as corujas que rondam na escuridão. Onde estariam as testemunhas dessa solene cena se o sol estivesse oculto desde manhã até de noite? Posto que três horas de luz proporcionaram a oportunidade de que se verificasse e de que se pudesse dar testemunho do fato, vemos nisso a sabedoria que não permitiu que a luz se dissipará tão rapidamente.

   Nunca percam de vista que esse milagre de fechar os olhos do dia, exatamente ao meio-dia, foi realizado por nosso Senhor em Sua debilidade. Ele havia caminhado sobre o mar, ressuscitado mortos, e sarado aos enfermos nos dias de Sua força; porem, agora, decaiu baixíssimo, tem febre, sem forças e sedento. Ele se movimenta nos limites da dissolução; no entanto, possui o poder de escurecer o sol exatamente ao meio-dia. Ele é ainda verdadeiro Deus de verdadeiro Deus.[1]

"Olhem, uma torrente púrpura derrama-se
Desde  Suas mãos e de Sua cabeça, A maré vermelha apaga o sol;
Seus gemidos despertam os mortos."

   Se Ele pode fazer isso em Sua debilidade, o que não poderá fazer em Seu poder? Não esqueçam que esse poder foi desdobrado em uma área na que Ele usualmente não manifestou Sua força. A área de Cristo é de bondade e benevolência, e conseguintemente, de luz. Quando Ele adentra nas áreas de convocar à escuridão ou de chamar à juízo, Ele ocupa-se daquilo que Ele nomeia Sua estranha obra. As obras de Sua mão esquerda são maravilhas de terror. Somente de vez em quando que Ele faz com que o sol se oculte ao meio-dia, ou escurece a terra em dia claro (Amós 8:9).

   Se nosso Senhor pôde trazer a escuridão ao morrer, que glória não poderíamos esperar agora que Ele vive para ser luz da cidade de Deus para sempre? O Cordeiro é a luz, e que luz! Os céus mostram as pistas de Seu poder agonizante, e perdem seu brilho. Por acaso os novos céus e a nova terra não darão testemunho do poder do Senhor ressuscitado? As densas trevas que rodeiam ao Cristo moribundo são as vestes do Onipotente: Ele vive outra vez, e tem todo o poder em Suas mãos, e todo esse poder o empregará para abençoar Seus eleitos.

   Que chamado deve ter sido para os despreocupados filhos dos homens, esse meio-dia convertido em meia-noite! Eles não sabiam que o Filho de Deus estava em meio deles; nem que Ele estava cumprindo a redenção humana. A hora mais grandiosa de toda a história humana dava a impressão que passaria sem que se a notasse, quando, subitamente, a noite saiu apressadamente de suas habitações e usurpou o dia. Todo mundo perguntou a seu companheiro: “o que essa escuridão significa?” Os negócios foram paralisados: o arado ficou no meio do sulco e o machado não pode ser alçado. Era meio-dia, justo quando os homens encontram-se mais ocupados; porem, todos eles fizeram uma pausa geral. Não só no Calvário, mas também em todas as colinas, e em cada vale, as trevas baixaram. Houve um hiato na caravana da vida. Ninguém podia se mover exceto buscando seu caminho as apalpadas, tal como os cegos o fazem. O dono da casa pediu que a luz fosse acesa ao meio-dia, e o servente, tremendo, obedeceu essa ordem inusitada. Outras luzes também brilhavam, e Jerusalém era uma cidade submersa na noite, mas os homens não estavam em suas camas. Como a humanidade estava surpreendida! Em volta desse grandioso leito de morte conseguiu-se uma quietude apropriada. Não duvido que um gélido terror apoderou-se das massas das pessoas, e que os homens prudentes anteciparam coisas terríveis. Os que tinham permanecido ao redor da cruz, e se atreveram a insultar a majestade de Jesus, estavam paralisados de terror. Eles cessaram com sua obscenidade e deixaram de cruelmente se alegrarem. Até mesmo os mais vis deles estavam atemorizados, ainda que não convencidos – os demais “se golpeavam nos peitos.” Os que puderam, sem dúvida, foram tremulantes para suas casas trataram de se esconder, por medo dos terríveis juízos que, temiam, teriam que encarar.

   Não me surpreende que existam tradições de coisas estranhas que foram ditas no silêncio dessas trevas. Esses sussurros do passado podem ou não ser verdadeiros; foram tema de controvérsia dos estudiosos, porem o esforço da disputa foi energia mal gasta. No entanto, não nos surpreenderia que alguém tenha dito, como afirmam alguns repórteres: “Deus está sofrendo ou o mundo está perecendo.” Nem irei eliminar de minhas crenças a lenda poética que afirma que o piloto egípcio de um barco, navegando rio abaixo entre seus bancos cheios de juncos, escutou uma voz que saia da sussurrante flora, dizendo: “O grandioso Pão morreu.” Em verdade, o Deus da natureza estava expirando, e coisas ainda mais ternas que os juncos da ribanceira tremeriam diante desse som.

   Somos informados que essas trevas cobriram toda a terra; e Lucas diz: “sobre toda a terra.” Essa parte de nosso globo na que correspondia à noite natural, não foi afetada; porem, para todos os homens que estavam despertos, e que se encontravam em seus trabalhos, era o aviso de um grandioso e solene evento. Era estranho além de toda experiência, e todos os homens se maravilharam; pois, quando a luz devia de ter tido maior brilho, todas as coisas foram escurecidas pelo espaço de três horas.

   Deve existir um grande ensino nessas trevas; pois quando nos aproximamos da cruz, que é o centro da história, cada evento está repleto de significado. Luz saltará dessas trevas. Amo sentir a solenidade das três horas de sombras de morte, assentar-me ali e meditar, sem nenhuma companhia, exceto ao Augusto Sofredor, em cujo redor desceram as trevas. Irei apresentar quatro pontos, segundo o Espírito Santo me guie. Primeiro, inclinemos nossos espíritos na presença de um milagre que nos assombra; em segundo, consideremos essas trevas como um véu que esconde; em terceiro, como um símbolo que instrui; e em quarto lugar, como um demonstração de simpatia, que nos serve de advertência pelas profecias que implica.

I. Em primeiro lugar, contemplemos essas trevas como UM MILAGRE QUE NOS ASSOMBRA. Poderia parecer uma observação de rotina o fato de que essas trevas estavam completamente fora do curso natural das coisas. Desde que o mundo começou, nunca se ouviu que em pleno meio dia, houvera tido trevas sobre toda a terra. Isso estava completamente fora da ordem da natureza. Algumas pessoas negam os milagres; e se também negam a Deus, de pronto não irei me dirigir a elas. Mas seria muito estranho que alguém que cresse em Deus, duvidasse da possibilidade dos milagres. Parece-me que, aceitando a existência de Deus, os milagres devem ser esperados como uma declaração ocasional de Sua independência e de Sua vontade ativa. Ele pode estabelecer certas regras para Suas ações, e em Sua sabedoria apegar-se a elas; mas certamente deve reservar para Si mesmo a liberdade de apartar-se de Suas próprias leis, ou do contrário, em certa medida, haveria abandonado Sua Deidade pessoal, teria deificado a lei, colocando-a acima de Si mesmo.

   Não acrescentaria em nada nossa ideia da glória de Sua Deidade, se pudesse nos assegurar que Ele se fez a Si mesmo o sujeito da regra, atando Suas mãos para não atuar jamais exceto de certa maneira específica. Da auto-existência e completa liberdade da vontade que entram em nossa mesma concepção de Deus, somos levados a esperar que algumas vezes Ele não deva se apegar aos métodos que segue como Sua regra geral. Isso levou à convicção universal que os milagres são uma prova da Deidade. As obras gerais da criação e da providência são as melhores provas segundo entendo: porem, o coração geral de nossa raça, por uma razão ou outra, olha os milagres como uma evidência mais segura; demonstrando dessa forma que de Deus se espera os milagres.

   Ainda que o Senhor estabeleça em Sua ordem que haja dia e noite, Ele, nesse caso, com abundante razão interpõe três horas de noite no meio do dia. Observem a razão. O inusitado na natureza inferior é levado a harmonizar-se com o inusitado nos tratos do Senhor da natureza. Certamente esse milagre era sumamente congruente com esse milagre ainda maior que estava tendo lugar na morte de Cristo. Por acaso não estava o próprio Senhor apartando-se de todas as formas normais? Não estava fazendo isso que jamais havia feito desse o principio, e que jamais seria feito novamente? Que os homens morram é algo tão comum, que é considerado inevitável. Não nos surpreende o som dos sinos dobrando nos campanários em um funeral: familiarizamo-nos com a tumba.

   Conforme os companheiros de nossa juventude morrem ao nosso lado, já não somos tomados pela surpresa; pois a morte está em todo nosso derredor e dentro de nós. Porem, que o Filho de Deus morra, isso está mais alem de toda expectativa, e não só por acima da natureza, mas até mesmo contrário a ela. O que é igual a Deus, suspende numa cruz e morre. Não sei que outra coisa poderia parecer mais fora de toda regra e mais além de toda expectativa que isso. Que o sol se tenha escurecido ao meio dia é um acompanhamento adequado à morte de Jesus. Por acaso não é assim?

   Mais ainda, esse milagre não somente estava fora da ordem natural, mas também é um milagre que se teria considerado impossível. Não é possível que se tenha um eclipse de sol quando há lua cheia. Quando a lua está cheia, não está em uma posição na que possa projetar sua sombra sobre a terra. A Páscoa dos judeus ocorria na lua cheia, e, portanto não era possível que houvera um eclipse solar. Esse escurecimento do sol não foi estritamente um eclipse astronômico; sem dúvida a escuridão se fez de outra forma: no entanto, para aqueles que estavam ali presentes, certamente pareceu ser um eclipse total do sol: algo impossível.

   Ah irmãos! Quando tratamos com o homem, com a queda, com o pecado, com Deus, com Cristo, e com a expiação, encontramos que as impossibilidades habitam juntas como em uma casa. Temos chegado agora a uma região onde os prodígios, as maravilhas, as surpresas, são a ordem rotineira do dia: o sublime volta-se em lugar comum quando entramos no círculo do amor eterno. Sim, mas ainda; agora abandonamos a sólida terra do possível, e nos adentramos no mar, onde vemos as obras do Senhor, e Suas maravilhas nas profundezas. Quando pensamos no impossível em outras áreas, começamos a retroceder: porem, o caminho arde nas chamas do divino, e logo percebemos que “para Deus tudo é possível.” Vejam, então, na morte de Jesus, a possibilidade do impossível! Vejam como o Filho de Deus pode morrer.

   Algumas vezes nos vemos obrigados a fazer uma pausa quando encontramos com uma expressão em algum hino, que implica que Deus pode sofrer ou morrer; consideramos que o poeta usou uma licença poética demasiadamente grande: no entanto, é conveniente que nos refreamos de ser hipercríticos, já que nas Santas Escrituras há palavras como essas. Inclusive lemos (Atos 20:28) sobre a “igreja do Senhor, a qual ele resgatou por seu próprio sangue.” O sangue de Deus! Ah! Não me preocupa defender a linguagem do Espírito Santo; porem, em sua presença tomo a liberdade de justificar as palavras que cantamos a poucos instantes:

“Bem faz o sol ao esconder-se nas trevas,
E ocultar todas as glórias,
Quando Deus, o poderoso Criador, morreu
Pelo homem, pelo pecado da criatura”

   Não me atreverei a explicar a morte do Deus encarnado. Basta-me crer nela, e depositar minha esperança nela.

   Como pode o Santo carregar com o pecado? Tampouco sei. Um homem sábio nos disse, como se fosse um axioma, que a imputação ou a não imputação do pecado é uma impossibilidade. Que pense o que quiser: já nos familiarizamos com tais coisas desde que olhamos para a cruz. Para nós, as coisas que os homens qualificam de absurdas se converteram em verdades fundamentais. A doutrina da cruz é loucura aos que se perdem. Sabemos certamente que em nosso Senhor não houve pecado, no entanto, Ele levou nossos pecados sobre Seu próprio corpo, no madeiro. Não sabemos como o inocente Filho de Deus pode sofrer por pecados que não eram seus; surpreende-nos que a justiça permita que Alguém tão perfeitamente santo seja desamparado por Seu Deus e seja levado a clamar “Eloi, Eloi, Lama Sabactani?” Porem, assim aconteceu, e tal por decreto da mais excelsa justiça; e nos alegramos por isso.  Como aconteceu com o eclipse do sol, assim Jesus fez coisas por nós, nas agonias de Sua morte, que no juízo comum dos homens, devem ser consideradas como completamente impossíveis.

   Nossa fé se sente em casa na terra das maravilhas, onde os pensamentos do Senhor encontram-se tão altos sobre nossos pensamentos, assim como os céus são mais altos que a terra. Em relação a esse milagre, tenho que assinalar também que esse escurecimento do sol sobrepassou todos os eclipses ordinários e naturais. Esse durou muito mais que um eclipse ordinário, e se apresentou de uma forma diferente. Segundo Lucas, veio primeiro a escuridão sobre toda a terra, e o sol escureceu depois: as trevas não começaram com o sol, antes, se sobrepuseram ao sol. Foi único e sobrenatural. Agora, entre todas as dores, nenhuma dor é comparável a dor de Jesus: de todas as aflições, nenhuma corre paralela às aflições de nosso grandioso Substituto.

   Da mesma maneira que a luz mais poderosa projeta a sombra mais profunda, assim o surpreendente amor de Jesus custou-lhe uma morte que não é a sorte comum dos homens. Outros morrem, porem esse homem é “obediente até a morte.” Outros bebem o gole fatal, no entanto, não precisam tomar nem de seu amargo nem de seu fel; Todavia, Ele “experimentou a morte.” Cada parte de Seu ser foi escurecida com essa extraordinária sombra de morte; e a escuridão natural externa foi somente para cobrir uma morte especial que eram inteiramente única.

   E agora, quando penso nela, essas trevas parecem ter sido perfeitamente naturais e adequadas. Se tivéssemos que escrever a história da morte de nosso Senhor, não poderíamos omitir as trevas sem deixar de lado um elemento muito importante. As trevas parecem ser uma parte dos componentes naturais dessa grandiosa transação. Leiam toda a história e não estarão surpresos por essas trevas; depois que a mente de vocês se familiarize com o pensamento que esse é o Filho de Deus, e que Ele estende Suas mãos à cruel morte de cruz, não estarão maravilhados quando o véu do templo se rasgue; nem surpreendidos pelo terremoto ou pela ressurreição de alguns mortos. Essas coisas são coadjuvantes adequadas da paixão de nosso Senhor; as trevas também são. Desempenham seu próprio papel, e aparenta que não teriam possibilidade de ser de maneira diferente:

“Esse sacrifício! A morte Dele,
O Altíssimo e por sempre Santo!
Que os céus se apagam está muito certo,
E que se torne negro o brilho do sol.”

   Reflitam por um momento. Não lhes pareceu como se a morte que essas trevas envolviam eram também uma parte natural do grandioso todo? Por fim chegamos a sentir como se a morte do Cristo de Deus fosse uma parte integral da história humana. Não se pode eliminá-la da crônica do homem; ou será que pode? Introduza a Queda, e olhe o Paraíso Perdido, e não pode completar o poema até que tenham introduzido esse Homem mais grande ainda que nos redimiu, e que por meio de Sua morte nos deu o Paraíso Restaurado.[2] É uma característica singular de todos os verdadeiros milagres, que ainda que sua surpresa não termine nunca, jamais se percebem como anti-naturais: são maravilhosos, porem, jamais monstruosos.

   Os milagres de Cristo se encaixam no curso natural da história humana: não podemos ver como o Senhor poderia estar na terra, e que Lázaro não houvesse sido ressuscitado dos mortos quando a dor de Marta e Maria fora expressa de maneira tão comovedora. Não podemos perceber como os discípulos poderiam ter sido sacudidos pela tormenta no Mar da Galiléia e que o Cristo não caminhasse sobre as águas para libertá-los. Maravilhas de poder são elementos esperados em seu lugar com as circunstâncias que as rodeiam. Um milagre segundo a Igreja Católica é sempre monstruoso e desprovido de harmonia com aquilo que está em seu redor. O que me importa que a cabeça de Santa Vinfreda [3] tenha surgido do poço e falado de lá com o camponês surpreendido que se aproximava para tirar água? Não me importa se saiu do poço ou não; isso não altera a História em nada, nem dá a ela tom; é algo agregado que não forma parte do registro histórico.

   Porem, os milagres de Jesus, e esse das trevas entre eles, são essenciais para a história humana; e esse é de forma especial, no caso de Sua morte e essas grandes trevas que a envolveram. Todas as coisas na história humana convergem na cruz, que não parece ser para nada uma ocorrência ou um recurso posterior, mas sim o canal adequado e ordenado desde o princípio pelo qual correria o amor até alcançar o homem culpado.

   Não posso dizer mais porque me falta a voz, ainda que tivesse muitas outras coisas mais a dizer. Sentem-se e permitam que as densas trevas os cubram até o ponto que nem sequer possam ver a cruz, sabendo que fora do alcance do olho mortal o Senhor fez a redenção de Seu povo. Ele fez em silêncio um milagre de paciência e amor, por meio do qual a luz veio aos que habitam nas trevas e no vale das sombras da morte.

II. Em segundo lugar, desejo que considerem essas trevas como UM VÉU QUE ESCONDE. O Cristo pendido naquele madeiro. Vejo a terrível cruz. Vejo aos dois ladrões, um de cada lado. Vejo a meu redor, e observo cheio de tristeza a esse variado grupo de cidadãos de Jerusalém, escribas, sacerdotes, estrangeiros provindos de diferentes países, conjuntamente com os soldados romanos. Todos voltam seus olhares até Ele, e em sua maioria contemplam com cruel desprezo ao Santo que está no centro da cena. Verdadeiramente, é um espetáculo horrível.

   Vejam esses cães comuns e esses touros de Basã que são de uma classe mais notável, todos unidos para desonrar ao Manso e Humilde. Devo confessar que nunca li a história da morte de meu Senhor, sabendo o que sei da dor da crucificação, sem sentir uma profunda angústia: a crucificação era uma morte digna de ter sido inventada pelos demônios. A dor que envolvia era sem medida; não os torturarei descrevendo-a nesse momento. Conheço muitos queridos corações que não podem ler sobre ela sem derramar lágrimas e sem dormir depois durante várias noites.

   Porem, havia algo mais que angústia no Calvário: o ridículo e desprezo amargavam tudo. As zombarias, essas cruéis piadas, os escárnios, sinais que eles fizeram com a língua, que diremos disso tudo? Algumas vezes senti uma pequena simpatia por esse príncipe francês que falava: “Se eu tivesse estado lá com meus guardas, teria varrido todos esses desgraçados.”[4] Era um espetáculo demasiadamente terrível: a dor da vítima era extrema, porem, quem poderia suportar a abominável iniquidade dos zombadores.

   Demos graças a Deus porque em meio do crime desceram as trevas que fizeram com que fosse impossível que os escarnecedores continuassem com suas burlas. Jesus devia morrer; para Sua dor não podia existir alívio, e não podia ser liberto da morte; porem, os burladores deviam se calar. Da maneira mais efetiva suas bocas foram fechadas pelas densas trevas que os envolveram.

   O que vejo nesse véu é, primeiro que tudo, que era UMA OCULTAÇÃO DESSES INIMIGOS CULPADOS. Já pensaram nisso alguma vez? É como se Ele mesmo tivera dito: “Não posso suportá-lo. Não irei seguir observando essa infâmia! Desça, ó véu!” e as densas sombras desceram:

“Pergunte aos céus: ‘qual inimigo de Deus fez Essa ação sem par?’ 
Os céus exclamam: ‘Foi o homem; e nós arrebatamos o sol
De tal espetáculo de culpa e vergonha”

   Graças a Deus, a cruz é um esconderijo. Ministra aos homens culpados um albergue para se protegerem do olho Daquele que tudo enxerga, de tal forma que a justiça não precise vê-los e golpeá-los. Quando Deus levanta Seu Filho, e o faz visível, esconde o pecado dos homens. Ele diz que “Deus, tendo passado por alto os tempos dessa ignorância.” Ainda mesmo a grandeza de seus pecados Ele dá as costas, de tal forma que não precisa mais vê-los, mas pode exercer Sua paciência, e permitir que Sua piedade suporte as provações dos homens. O coração do Eterno Deus deve ter lastimado ver tal crueldade sem freio dirigida até Ele, que só fez o bem a Seu redor, curando todo tipo de enfermidades. Foi terrível ver os mestres do povo rejeitarem Cristo com desdém, a semente de Israel, que devia aceitá-lo como seu Messias, lançá-lo fora como uma coisa desprezada e aborrecedora. Por conseguinte, sinto gratidão para com Deus por convocar essas trevas para que cobrissem toda a terra, e colocassem fim a essa cena vergonhosa.

   Quero dizer a qualquer um que seja culpável aqui: Graças a Deus que o Senhor Jesus fez possível que seus pecados sejam escondidos mais que completamente por espessas trevas. Graças a Deus que em Cristo Ele não o vê com esse severo olho de justiça que implicaria vossa destruição. Se Jesus não tivesse se interposto, cuja morte você há desprezado, você teria alcançado em sua própria morte o resultado de seu próprio pecado já a muito tempo – porem, por causa de seu Senhor se lhe é permitido viver como se Deus não o percebera. Essa paciência está destinada a trazer arrependimento a ti: Não viras?

   Mas, continuando, essas trevas foram um sagrado esconderijo para a bendita Pessoa de nosso divino Senhor. Por assim dizer, os anjos encontraram para seu Rei um pavilhão de densas nuvens, na que Sua Majestade poderia se abrigar em sua hora de miséria. Era muito que o olho ímpio contemplasse tão toscamente essa imaculada Pessoa. Por acaso Seus inimigos não o tinha desnudado, e lançado sortes sobre Suas vestes? Portanto, era conveniente que a santa humanidade encontrasse por fim um esconderijo adequado. Não era bom que olhos brutais vissem as linhas gravadas pelo cinzel da aflição sobre essa bendita figura. Não era bom que os zombadores vissem as contorções desse corpo sagrado, habitado pela Divindade, enquanto Ele era quebrantado sob a vara de ferro da ira divina por causa nossa. Era conveniente que Deus o cobrisse, para que ninguém olhasse tudo o que fazia e tudo o que carregava quando foi feito pecado por nós. Eu bendigo devotamente a Deus por esconder dessa forma a meu Senhor: assim, Ele foi coberto dos olhos que não eram dignos de ver o Sol e muito menos de ver ao Sol da Justiça.

   Essa escuridão também nos adverte, até mesmo para nós que somos muito reverentes. Essa escuridão nos diz que a Paixão é um grande mistério, que não podemos escrudrinhar. Eu trato de explicá-lo como substituição, e penso que ai onde a linguagem da Escritura é explicita, eu posso e devo ser explicito também. Porem, ainda penso que a ideia de substituição não abrange completamente o tema, e que nenhuma concepção humana pode captar de maneira plena todo esse terrível mistério.

   Foi efetivado na escuridão, porque o significado pleno de vastos alcances e o resultado do mesmo não podem ser contemplados pela mente finita. Podem me dizer que a morte do Senhor Jesus foi um grande exemplo de auto-negação: eu posso ver isso e muito mais. Podem falar-me que foi uma obediência maravilhosa à vontade de Deus: eu posso ver isso e muito mais. Podem-me dizer que consistiu em carregar aquilo que devia ser levado por milhares de milhares de pecadores da raça humana, como castigo por seus pecados: posso ver isso, e encontrei minha melhor esperança nisso. Porem, não me digam que isso é tudo o que está na cruz. Não, mesmo grandioso como isso pode ser, há muito mais na morte de nosso Redentor.

   Só Deus conhece o amor de Deus: só Cristo conhece tudo o que logrou quando inclinou Sua cabeça e entregou Seu espírito. Existem mistérios comuns na natureza nos que seria uma irreverência querer se intrometer; porem, esse é um mistério divino, diante do qual tiramos nossos sapatos, pois o lugar chamado Calvário, terra santa é.

   Deus colocou um véu na cruz, cobrindo-a de trevas, e muito de seu significado mais profundo permanece na escuridão; não porque Deus não queira revelá-lo, mas sim porque não temos a suficiente capacidade para discernir tudo. Deus se manifestou na carne, e nesse corpo humano quitou o pecado por meio do auto-sacrifício: todos nós sabemos isso; porem “Indiscutivelmente, grande é o mistério da piedade.”

   Novamente, esse véu de escuridão também figura para mim a maneira como que os poderes das trevas sempre se esforçam por esconder a cruz de Cristo. Combatemos contra as trevas quanto tratamos de pregar a cruz. “Esta é a vossa hora e o poder das trevas.” (Lucas 22:53), disse Cristo; e não duvido que as nessa hora, hostes infernais desferiram um feroz assalto contra o espírito de nosso Senhor. Também sabemos que, se o príncipe das trevas vai estar em algum lugar lutando, certamente será onde Cristo é posto mais alto. Encobrir a cruz é o objetivo do inimigo das almas. Alguma vez você se deu conta disso?

   Essas pessoas que odeiam o Evangelho deixarão correr qualquer outra doutrina sem apresentar combate; mas, se a expiação e as verdades que derivam dela são pregadas, de imediato elas são abaladas. Nada provoca tanto ao diabo como a cruz. A teologia moderna possui como seu principal objetivo o obscurecimento da doutrina da expiação. Esses modernos polvos tingem de negro a água da vida. Fazem do pecado algo sem importância, e seu castigo só um assunto temporal: e assim degradam o remédio ao retirar a importância da enfermidade.

   Não somos ignorantes de seus truques. Espero, meus irmãos, que as nuvens da escuridão se reunirão em redor da cruz bem no seu centro, para conseguir assim ocultá-la da vista do pecador. Porem, também podem esperar isso, que ali as trevas chegarão a seu fim. A luz surge da escuridão: a eterna luz do Filho de Deus que não morre, que tendo ressuscitado dos mortos, vive para sempre para dispersar as trevas do mal.

III. Agora passaremos a falar dessas trevas como UM SÍMBOLO QUE INSTRUE.

   O véu cobre e oculta; porem, por sua vez, como um emblema, também revela. Parece dizer: “não trate de buscar dentro, mas aprenda do véu mesmo: tem trabalho de querubim sobre ele.” Essa escuridão nos ensina o que Jesus sofreu: ajuda-nos a adivinhar as aflições que talvez não possamos ver de outra forma.

   A escuridão simboliza a ira de Deus que caiu sobre os que tiraram a vida de Seu Filho unigênito. Deus estava irado e Sua carranca eliminou a luz do dia. Ele estava justamente enojado, quando o pecado estava matando Seu unigênito Filho; quando os lavradores judeus diziam: “Esse é o herdeiro; vinde, matemos-lhe e nos apossamos de sua herança.” Essa é a ira de Deus para toda a humanidade, pois praticamente todos os homens participaram na morte de Jesus. Essa ira levou os homens às trevas; são ignorantes, cegos, aturdidos. Chegaram a amar as trevas mais que a luz porque suas obras são más. Nessas trevas eles não se arrependem, mas sim seguem rejeitando ao Cristo de Deus. Em meio dessas trevas Deus não os pode olhar com complacência – os vê como filhos das trevas, e herdeiros da ira, para os quais está reservada a escuridão eterna.

   O símbolo também nos fala do que nosso Senhor Jesus teve que suportar. As trevas exteriores eram uma figura da escuridão que tinha dentro Dele. No Getsemani, uma densa escuridão caiu sobre o espírito de nosso Senhor, ele disse: “Minha alma está muito triste, até a morte.” Sua alegria era a comunhão com Deus: esse gozo o tinha abandonado, e Ele estava no escuro. Seu dia era a luz da face de Seu Pai: esse rosto estava escondido e uma noite terrível havia depositado-se a seu redor. Meus irmãos, eu pecaria contra esse véu se pretendera que eu lhes pudesse dizer em que consistia essa tristeza que oprimia a alma do Salvador: nada mais posso compartilhar com vocês do que me foi dado na medida em que tive comunhão com Ele em Seus sofrimentos.

   Você sentiu alguma vez um horror profundo e pesado para com o pecado; o pecado próprio e o pecado dos demais? Alguma vez já viram o pecado à luz do amor de Deus? Alguma vez o pecado pairou sobre sua consciência sensível? Deslizou-se internamente em vocês um sentindo de ira como a escuridão da meia-noite; e esteve muito próximo de vocês, ao redor de vocês, sobre vocês e dentro de vocês? Vocês se sentiram presos em sua debilidade, e por sua vez perceberam que a porta até Deus está fechada? Olharam a sua volta sem encontrar ajuda, sem consolo ainda mesmo em deus: sem esperança, sem paz? Em tudo isso, vocês deram um pequeno gole desse mar salgado no que nosso Senhor foi lançado.

   Sim, como Abraão, vocês sentiram o temor de uma grande escuridão que cai sobre vocês, então lhes foi dado provar algo do que seu divino Senhor sofreu, quando o Pai quis quebrantá-lo, sujeitando-o a padecimento. Isso é o que levou a suar grossas gotas de sangue que caíram no chão; e isso foi o que levou Cristo a clamar na cruz com um grito aterrador: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste?” Não foi a coroa de espinhas, nem o látego, nem a cruz que o motivaram a clamar, mas sim a escuridão, a terrível escuridão do abandono que oprimia Sua mente e o fazia sentir um completo atordoamento.

   Foi-lhe retirado tudo o que podia o consolar, e tudo o que podia o angustiar foi acumulado sobre Ele. “O espírito do homem susterá a sua enfermidade, mas ao espírito abatido, quem o suportará? (Provérbios 18:14)?” O Espírito de nosso Salvador estava ferido, e ele clamou: “meu coração é como cera, derreteu-se no meio das minhas entranhas. (Salmos 22:14)” Ele foi privado de todo consolo natural e espiritual, e Sua angustia foi completa e total. As trevas do Calvário não permitiram o brilho das estrelas, como noutra noite qualquer, mas escureceram cada uma das luminárias do céu. Seu forte clamor e Suas lágrimas evidenciaram a profunda aflição de Sua alma. Se ele carregou com tudo, foi possível porque Sua mente foi capaz de sobrecarregar tudo, ainda que, certamente, foi vigorizada e engrandecida pela união com a Deidade. Ele suportou o equivalente ao inferno; mais ainda, não somente isso, mas suportou o equivalente a dez mil infernos no que concerne a restituição da Lei.

   Nosso Senhor rendeu em Sua agonia de morte uma homenagem à justiça muito maior do que se um mundo houvera sido condenado à destruição. Tendo dito isso, que mais posso falar? Bem poderia lhe falar que essa inefável escuridão, esse esconderijo para a face Divina, diz muito mais das aflições de Jesus do que qualquer outra palavra poderia expressar.

   Adicionalmente, penso que vejo também nessa escuridão aquilo com o que Jesus estava combatendo; porque jamais devemos esquecer que a cruz era um campo de batalha para Ele, onde triunfou de maneira gloriosa. Nesse momento, estava combatendo com as trevas; com os poderes da escuridão dos quais Satanás é o cabeça, com as trevas da ignorância humana, com a depravação e com a falsidade. A batalha que foi tão evidente no Gólgota foi da mesma intensidade desde sempre. Nesse momento o conflito chegou a seu clímax, pois os caudilhos dos grandes exércitos enfrentaram-se em um conflito pessoal. A batalha desse momento na que você e eu participamos de uma ou outra forma é como nada comparada com essa batalha na que todos os poderes das trevas com seus compactos batalhões lançaram-se contra o Todo Poderoso Filho de Deus. Ele resistiu sua investida inicial, suportou o tremendo golpe de seu assalto, e ao fim, com gritos de vitória, levou cativo o cativeiro.

   Ele, por Seu poder e Divindade, converteu a meia-noite em dia novamente, e trouxe de novo para esse mundo um reino de luz que, bendito seja Deus, jamais terá fim. Voltem à batalha, exércitos das trevas, se é que vocês se atrevem!  A cruz os derrotou: a cruz os derrotará. Aleluia! A cruz é o estandarte da vitória; sua luz é a morte das trevas. A cruz é o farol que guia a pobre humanidade agitada pelo mal tempo ao porto da paz. Essa é a lâmpada que brilha sobre a porta da casa do grandioso Pai para conduzir ao filho pródigo para casa.

   Não tenhamos medo de toda escuridão que nos ronda a caminho de casa, já que Jesus é a luz que conquista tudo.

   As trevas não chegaram a um fim até que o Senhor Jesus rompeu o silêncio. Tudo havia estado quieto, e as trevas aumentaram de maneira terrível. Ao fim, Ele falou, e Sua voz pronunciou um salmo. Tratava-se do Salmo 22: “Deus meu, Deus meu, porque me desamparaste.” Cada “Eli” que repetia desdobrava a manhã na cena. Quando Cristo pronunciou a pergunta “… porque me desamparaste?”, os homens já tinha voltado a enxergar novamente, e alguns se atreveram em mal interpretar Suas palavras, mais por conta do terror do que por ignorância. Eles disseram: “A Elias chama...” Talvez eles pretendessem que fosse uma zombaria, porem, eu não creio assim. De toda maneira, não foi uma expressão que tenham percebido, como tampouco a resposta de seus companheiros.

   No entanto, já havia um pouco mais de luz, o lhes permitiu tomar uma esponja e encharcar ela em vinagre. Meus irmãos, nenhuma luz virá aos corações submersos na escuridão a menos que Jesus fale; e a luz não será clara a menos que ouçamos a voz de Suas aflições por nossa causa, conforme exclama: “porque me desamparaste?” Sua voz de dor deve ser o fim de nossas dores: Seu grito nas trevas deve alegrar nossas tristezas, e deve trazer a manhã celestial para nossas mentes.

   Vocês podem ver quanto há no meu texto. É uma verdadeira alegria falar sobre um tema quando se tem boa saúde, e se está repleto de vigor; então somos como Naftali, cerva solta; podemos dar boas palavras: porem, hoje me acho em meio de dores quanto a meu corpo, e minha mente parece estar congelada. No entanto, o Senhor pode abençoar minhas débeis palavras, fazendo-lhes ver que nessas trevas existe um profundo e amplo significado que ninguém dentre nós deve esquecer. Se Deus os ajuda em suas meditações, essas trevas serão luz em volta de vocês.

IV. Passo agora a meu quarto ponto, e para concluir, minhas palavras tratarão sobre A SIMPATIA QUE PROFETIZA. Vocês podem ver a simpatia da natureza com seu Senhor: a simpatia do sol nos céus com respeito ao Sol da Justiça? Não era possível que Aquele quem fez todas as coisas estivesse na escuridão, e enquanto isso a natureza estivesse na luz.

   A primeira evidência de simpatia que vejo é essa: todas as luzes são frágeis quando Cristo não brilha. Tudo é escuridão quando Ele não brilha. Na igreja, se Jesus não está lá, o que é que há lá? O próprio sol não poderia brindar-nos de luz se Jesus fosse quitado. As sete lâmpadas de ouro estão prestes a extinguir-se, a menos que Ele caminhe em meio delas, e as limpe e avive com azeite santo.

   Meus irmãos, vocês logo perdem suas energias, seus espíritos desmaiam, e suas mãos se cansam se o Cristo não está com vocês. Se Jesus Cristo não é pregado de maneira íntegra, se Ele não está conosco por Seu Espírito, então tudo está envolto em trevas. Escureçam a cruz, e terão escurecido todo o ensino espiritual. Não podem dizer: “Seremos claros em qualquer outro ponto, e lúcidos em matéria de qualquer outra doutrina, porem vamos evitar a expiação, pois tantas pessoas pensam preocupadamente a respeito.”

   Não, senhores, se uma luz é posta debaixo de um alqueire, toda a casa estará em trevas. Toda a teologia simpatiza com a cruz, e recebe sua cor e seus matizes dela. Seu piedoso serviço, seus livros, sua adoração pública, tudo estará em harmonia com a cruz de uma forma ou outra. Se a cruz está em trevas, em trevas também estará todo o trabalho de vocês-

“Que pensas tu de Cristo? Essa é a prova
Para medir tanto teu trabalho como teu esquema;
Não podes estar correto em nada,
A menos que penses corretamente Nele.”

   Tire suas duvidas; fabrique filosofias, e elabore suas teorias: não haverá nada de luz nisso se a cruz fica de fora. Vãs são as fagulhas que você se fabricou, irá estar absorvido em dor. Todo nosso trabalho e esforço terminarão em vaidade a menos que o trabalho e esforço de Cristo sejam nossa primeira e única esperança. Se você está na escuridão sobre esse ponto, única luz, qual grande é sua escuridão!

   Continuando, vejam a dependência de toda criação em Cristo, como se manifesta por meio das trevas, quando Ele se retira. Não era conveniente que Aquele que fez todos os mundos morrera, e que, no entanto, todos os mundos continuassem como haviam sido criados até esse momento. Se Ele sofre um eclipse, eles devem sofrer um eclipse também; se o Sol da Justiça se oculta em sangue, o sol natural deve manter-se em contato com Ele.

   Creio, meus amigos, que existe uma simpatia mais maravilhosa entre Cristo e o mundo da natureza, do que nós podemos imaginar. Toda a criação geme em uníssono, e uma está em dores de parto. Cristo em Seu corpo místico está em trabalhos, e assim a criação inteira deve esperar a manifestação do Filho de Deus. Estamos esperando a vinda do Senhor desde os céus, e não há monte nem vale, montanha nem mar, que não estejam em perfeita harmonia com a igreja que espera. Não se surpreendam que haja terremotos em diversos lugares, erupções vulcânicas, terríveis tempestades, e proliferação de enfermidades mortais. Não se maravilhem quando ouçam de portentos terríveis, e coisas que fazem o coração gemer, pois essas coisas existirão até que venha o fim. Até que o grandioso Pastor converta Seu cajado em cetro, e comece Seu reino que não conhece sofrimento, essa pobre terra deve sangrar por cada uma de suas veias. As trevas existirão até que esses dias de espera cheguem a seu fim. Os que esperam uma história plácida até que Cristo venha, não sabem o que esperam.

   Vocês que pensam que a política generosa ira criar ordem e contentamento, e que o crescimento do livre comércio produzirá paz universal nas nações, buscam aos vivos em meio dos mortos. Até que o Senhor venha, a mensagem saiu: “A ruína, ruína, ruína,” e tudo será reduzido em ruínas, não só em outros reinos, mas também nesse, até que venha Jesus. Tudo o que possas ser abalado, será abalado, e só Seu trono irremovível e Sua verdade permanecerão. Agora é o tempo da batalha do Senhor contra as trevas, e não podemos esperar ainda a luz permanente.

   Queridos amigos, o pecado que ocultou Cristo em trevas e o fez morrer em trevas, escurece o mundo todo. O pecado que ocultou a Cristo em trevas e o fez pender da cruz, está escurecendo aos que não creem Nele, e viverão na escuridão e morrerão na escuridão a menos que se aproximem Dele, que é a única luz do mundo, e o que lhes pode proporcionar a luz. Não há luz para ninguém exceto em Cristo; e até tanto não creiam Nele, uma densa escuridão os cegará, tropeçarão e perecerão. Essa é a lição que quero que aprendam.

   Outra lição prática é: se nos encontramos em trevas nesse momento, se nossos espíritos estão imersos na escuridão, não desesperemos, pois o próprio Senhor Cristo esteve lá. Caso eu tenha caído na miséria por causa do pecado, não devo abandonar toda esperança, pois o Amado do Pai passou por uma escuridão mais densa que a minha.

   Oh, alma crente, se você está na escuridão está próximo das bodegas do Rei, e existe vinhos bem refinados descansando ai. Foi introduziu no pavilhão do Senhor, e agora pode falar com Ele. Não irá encontrar a Cristo nas lúcidas lojas do orgulho, nem nas sujas guaridas da impiedade: não o acharão onde o violino, a dança e o licor que fluem incendeiam as luxúrias dos homens, mas sim nas casas do luto encontrarão ao Homem de Dores. Ele não está onde Heródias baila, nem onde Berenice lança seus encantos; porem, Ele está onde a mulher de espírito contristado move seus lábios em oração. Ele nunca está ausente do lugar onde a penitência se senta nas trevas e lamenta suas faltas –

“Sim, Senhor, em horas de tristeza,
Quando as sombras invadem minha habitação,
Quando a dor exala seus gemidos,
E a tristeza seus suspiro e lamentos,
Então Tu está próximo.”

   Se vocês estão debaixo de uma nuvem, busquem seu Senhor, se de alguma maneira O puderem achar. Fique quieto em sua negra aflição, e digam: “Oh, Senhor, o pregador me diz que Tua cruz uma vez esteve em tal negridão como essa. Oh Jesus, ouve-me!” Ele te responderá: O Senhor irá vigiar desde o pilar das nuvens e derramará uma luz sobre você. “Pois conheci suas angústias,” Ele disse. O quebrantamento do coração não é algo estranho para Ele. Cristo também sofreu uma vez pelo pecado. Confia Nele e Ele fará que Sua luz brilhe sobre você. Descanse Nele, e Ele o sacará desse deserto tenebroso, e o levará à terra do descanso. Que Deus os ajude a fazer isso!

   Sábado passado tive uma alegria além do que posso descrever-lhes, por uma carta de um irmão que tinha sido restaurado à vida, luz e liberdade pelo sermão pregado no domingo anterior pela manhã. Não conheço uma alegria maior do que ser útil para as almas. Por essa razão, tratei de pregar essa manhã, ainda que não me sinto bem fisicamente para pregar. Oh, rogo para que possa ouvir mais notícias dos que foram salvos! Oh, que algum espírito que se extraviou no escuro pântano possa ver a vela que há em minha janela, e encontre o caminho de casa! Se você encontrou ao Senhor, o exorto a que jamais o deixe ir, una-se a Ele até que o dia venha e as sombras fujam. Que Deus o ajude a fazer isso por Jesus! Amém.


[1] Verdadeiro Deus de verdadeiro Deus: expressão usada no credo Atanásiano (n.T)

[2] Paraíso Perdido, Paraíso Restaurado: referência aos celebres poemas de John Milton, (1608- 1674) que foi um escritor inglês e autor do célebre livro O Paraíso Perdido, um dos mais importantes poemas épicos da literatura universal. Foi político, dramaturgo e estudioso de religião. Apoiou Oliver Cromwell durante o período republicano inglês, porém foi preso e acabou por ficar cego; na prisão, ditou o Paraíso Perdido, sua obra-prima, que conta a história da queda de Lúcifer, e foi publicado em 1667. Quatro anos mais tarde, lança o livro Paraíso Recuperado, uma espécie de seqüência do primeiro poema, onde trata da vinda de Cristo à Terra reconquistar o que Adão teria perdido.

[3] Provavelmente esse “milagre” citado é algum relativo à galesa Vinfedra (chamada no Pais de Gales de Gwenffrewi ; em Inglês moderno Winifred e inúmeras variações) , segundo contos e histórias, foi uma religiosa do século VII, filha de um  soldado proprietário de terra e sobrinha do religioso São Beuno, que a educou na fé: conta-se que ela, sendo várias vezes assediada por um jovem guerreiro chamado Caradog, esse, em um ataque de fúria , ao descobrir que ela seria freira, a decapitou nas escadas de uma capela ao dia 22 de junho, e que onde a cabeça dela caiu, jorrou uma fonte milagrosa, um poço considerado ainda hoje como ponto de peregrinação em Gales. Depois, seu tio Beuno amaldiçoou o guerreio, orou pela vida de Vinfreda, e ao recolocar a cabeça de sua sobrinha de volta ao pescoço, ela milagrosamente ressuscitou (morrendo 15 anos depois, depois de tornar-se monja e abadessa): é considerada padroeira do País de Gales. (Wikipédia e fontes católicas)

[4] Não achamos a quem Spurgeon se refere: porem, pela data do sermão e pelo termo da citação, 1886, poderia ser uma referência ou a Guerra Franca Prussiana, ou a Comuna de Paris (eventos próximos) ou anterior (N.Tradutor)
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FONTE: Traduzido de http://www.spurgeon.com.mx/sermon1896.html  
Todo direito de tradução protegido por lei internacional de domínio público  
Sermão nº 1896— THE THREE HOURS OF DARKNESS -  do volume 32 do The Metropolitan Tabernacle Pulpit,   
Tradução e revisão: Armando Marcos Pinto